sexta-feira, 13 de julho de 2007

NOTA DE DESPEDIDA

Leitores fiéis, infiéis e não-leitores,


Desrespeito, rivalidade e agressões de todos os tipos, físicas ou verbais, certamente não permeiam qualquer amizade, mínima que seja ela. Quando esses e outros elementos acontecem em seqüência que indica o pior, é hora de mudar alguma coisa. Ou mudar tudo. Quando um blog mixo e semi-abandonado põe em xeque a relação intensa e aparentemente duradoura de pessoas que se conheceram na faculdade e prometeram amor incondicional, é hora de abandoná-lo sem pestanejar. Sozinhos no água, sem amizade e sem ajuda, cada um que se salve no maremoto. Quando cada um de nós deseja o pior para os ex-colegas, é hora de... acabar com todos eles o quanto antes.

Mentira. Ao contrário do que a imprensa em geral insiste em noticiar, seguimos a vida com muita paz, amor e flores. Como os Beatles em 67. Mas, quase como os Beatles de uns três anos depois, seguiremos vôos ainda mais dispersos. Uns trabalhando demais e bebendo de menos, e outros, acertadamente, fazendo o contrário. É fato que, quando as pessoas se tornam distantes, não se podem mais dizer ‘a gente se vê por aqui ou se vê por aí’, mas apenas lamentar e dizer que um dia, ao menos, foi bom.

O recesso por tempo indeterminado servirá para que cada um de nós reflita sobre as próprias inspirações. Para que busquemos, em conjunto mais uníssono, algo que realmente lhes prenda a nós com o respeito que devemos a todos.

Mentira de novo. O blog acabou, senhores. Principalmente para acabarmos com essa encheção de lingüiça fria. Não somos os Beatles e nem os Los Hermanos.

Beijos a todos,
Literalmente Siderados.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Quando os dois ponteiros do relógio se encontrarem
Quando eu puder esquecer
Quando estiver tudo encaixotado
Quando tudo isso acabar

Quando chover fininho, uma chuva de verão
Quando a inspiração voltar
Quando chegar a próxima estação
Quando tudo, tudo isso acabar

Quero saber o que fazer
Quero pegar no sono
Quero partir de vez
Quero virar tantas páginas

Quero sair por aí
Quero aproveitar pra escrever
Quero ir pro mar, pegar uma cor
Quero virar tantas, tantas páginas

terça-feira, 3 de julho de 2007

ALGO MAIS DO QUE UMA SOMA DE ROTINAS

Eu nunca havia lido nada de Llosa - um daqueles autores eternamente na lista dos próximos, mas sempre outro livro entrava na frente com um gancho momentâneo. Quando li sobre o novo lançamento de Mario Vargas Llosa, “Travessuras da menina má”, este foi o gancho do momento. O resumo do enredo (quentinho do press-release) bailando em todos os jornais me chamou atenção: a história de encontros e desencontros de um homem e uma mulher, por várias fases de suas vidas e lugares do mundo.

Não, de fato a história não é o mais importante, e sim como o autor a desenvolve, o que conta, o que deixa implícito, as palavras exatas que usa e o que desperta em nós. E nisso as travessuras da menina má são exímias, com personagens atraentes, linguagem cuidadosa, descrições concisas e límpidas.

É uma vida inteira contada em 302 páginas que, diferentemente de livros mais curtos e rápidos de ler, pausa para descansar e refletir. Ficar na expectativa, assim como o protagonista Ricardo Somocurcio ficava a cada sumiço da menina má. Ela, Lily, a chilenita, no Peru; Arlette, em Cuba; Miss Robert Arnoux, em Paris; Mrs. Richardson, na swinging London; Kuriko, em Tóquio; e muitas outras - todas essas identidades falsas que a menina má assumiu ao encontrar um novo homem-rico, um novo país, uma nova possibilidade de riqueza e tudo o que o dinheiro pode comprar, sua única segurança no mundo.

Ricadito, ao contrário, o bom menino, tinha como único sonho morar em Paris. Foi para lá, nos seus vinte anos, como tradutor da Unesco, sem esperanças de voltar a ver a graciosa chilenita cheia de mistério que conhecera num certo verão, no bairro de Miraflores, em Lima, terra da infância. Enquanto ele conta sua vida de viagens solitárias e poucos amigos, sempre entremeada de fatos históricos e políticos (da experiência de vida de Llosa), a menina má vai e volta, como se cada vez fosse a última, como se cada palavra significasse o seu contrário.

O protagonista expatriou-se da terra natal para ser um forasteiro “que jamais se integraria de fato à França de seus amores” e sua profissão, a de intérprete, é o ofício de falar pelos outros, uma “profissão de fantasmas”, como descrita pelo colega trujimán Salomón Toledano – que, aliás, faz parte de um leque interessante de personagens secundários, como o artista hippie Juan Barreto, o menino mudo Ylal, o construtor de quebra-mares Arquimedes.

Enquanto o bom menino, com sua única e rala identidade, acreditava na simplicidade e no cotidiano, a menina má, com suas múltiplas identidades, tentava se livrar do passado pobre através da aventura inconseqüente. Mesmo caindo em certos velhos ditados e conservadorismos, como “quem entra no fogo é para se queimar” - será mesmo? será que quem entra no fogo não conta sempre com íntima certeza e real possibilidade de sair ileso? -, Llosa não deixa a “menina má” e o “bom menino” se transformarem nas entidades do Bem e do Mal. Eles transitam entre esses dois extremos, numa narrativa essencialmente sem julgamentos, heróis ou vilões.

sábado, 30 de junho de 2007

LATE, MAS NÃO MORDE

Às vésperas de completar vinte e dois anos, fui soterrado, sem qualquer chance de resistência, por um pedregulho de desilusão. Depois de sair de um show da Cachorro Grande no teatro do Sesi, em São Paulo, meio desolado, até tentei não perceber o óbvio: o rock era o tal pedregulho.

Na companhia de uns chapas, saí com um riso amarelo e uma ponta de não querer acreditar em alguma coisa (“eles são bons pra caramba, vocês não acham?”). Às 21h15 daquela terça-feira, eu tomei um metrô e voltei ao trabalho. Aliás, foi neste exato caminho que não pude mais tentar me trair: eu estava transpirando mais no vagão do metrô vazio do que havia transpirado durante todo o show. O rock havia me enganado, era isso? Mas, que cacete, por onde ele andava?

Cachorro Grande é roots, não posso dizer que perdi viagem. Se tudo dependesse deles (só deles!), aliás, talvez a pedra se esfarelasse antes de me pegar. Mas não. A organização, que é até gente fina de promover essas coisas a três reais, perdeu os limites e me tirou do sério. Cheguei às 20h15, o show havia começado às 20h00 e, no ingresso, pediam pra chegar às 19h45. Não era show do Ari Toledo, porra! Cheguei atrasado, mas, em meio minuto, eu estava na frente do palco. Cadê o rock nisso aí? O pessoal que foi, das patricinhas da lista VIP vestindo umas roupas chiques que eu não sei o nome até os cachorrinhos alinhadíssimos de terno e boina, estava, por assim dizer, meio miado (putz, eu juro que queria evitar esse trocadalho). Tentavam se agitar, ok, mas sempre com o cuidado de não borrar a maquiagem ou desamarrar o cadarço do All Star modelo novo.

Estava tudo comportado demais, num case de politicamente correto jamais imaginado por qualquer tiozão reaça: proibido fumar, proibido tirar foto, proibido tirar a camisa, proibido tomar cerveja (lá não vende e é proibido levar de fora), proibido destruir os assentos estofados que dividiam as pessoas em fileiras separadas (mas, graças ao diabo, ninguém estava sentado, pelo menos); proibido gritar, perder os modos, socar alguém na brincadeira.

Olhando para tudo aquilo, lembrei, entre aspas, da depredação geral de um lugar parecido na época do lançamento do Cabeça Dinossauro, dos Titãs. Ou de uma tal guerra de sorvetes promovida pelo público dos Paralamas, se não me engano, num shopping do Rio. Entre outros oitentismos, pra ficar na reviravolta nacional. Deve ter sido foda pacas (uma guerra de sorvete, por mais fria que seja, deixaria qualquer um daqueles seguranças do Sesi absolutamente descontrolados).

Mas, como eu ia dizendo, a culpa era muito menos da banda. E nem só do Sesi, também. Serião, afinal, é só pensar que hoje em dia os Titãs fazem pose de rebeldes com uma musiqueta de protesto bocó e os Paralamas são regravados por Rio Negro & Solimões. A Cachorro Grande se esforça, tem um look meio beatle-desleixado, umas coisinhas bem legais e um vocalista que usa uma camiseta escrito “who the fuck is Mick Jagger?”, mas, sinceramente (opa, olha o trocadalho!), o rock é bem, mas beeeem maior que isso. E, como diriam os Los Hermanos, eu não estava lá, mas eu vi. Eu sei que é.

Quando saí de lá mais limpo do que quando cheguei, enfim, percebi que tinha alguma coisa errada, muito mamão com açúcar e pouca seringa na veia, pouca coisa do mal. Caretice, quadradice, pilantragem e um baixista que se dignou a dizer duas únicas palavras muito rock’n’roll para os seus filhotes durante todo o espetáculo cronometrado: “Putaqueopariu, meeeu!”, naquele gauchês arrastado, sabe? No mais perfeito retrato de um rock meio brocha, sem perigo algum. Sóóóó.

Pode até parecer clichezão vir com esse papo de morte do rock e tal, mas... peraí! Quem foi que falou aqui que ele morreu? Pô, bicho, eu ainda tenho vinte e dois anos!! O rock não morreu, não, de jeito nenhum. Mas é um velhinho pançudo e acomodado em uma daquelas poltronas do último disco do Mccartney, com a língua de fora, como uma distorção real daquela que os Rolling Stones eternizaram. Putaqueopariu, mêo.

Rockers, nem tanto

O show da Cachorro foi na semana passada, desde quando eu vim pensando se as coisas eram realmente assim ou se eu estava fantasiando demais em torno do mítico quase sexagenário. Aí, ontem, eu resolvi dar um pulo na exposição do Bob Gruen, o fotógrafo que conheceu de perto os maiores nomes do mundo (isso, do mundo). Se, por um lado (digo, o das fotos), entendi que não estava fantasiando nada, que o negócio tinha sido realmente fodástico, por outro eu tive certeza que o rock tinha virado mesmo um melindre cheio de dedos.

Na entrada, naquele puta salão bonito da FAAP, o primeiro funcionário desconfiado já interceptou minha amiga por causa do tamanho da bolsa dela. Bolsas, só até aquele tamanho ali, apontou (um tamanho que, diga-se de passagem, dava pra levar facilmente um quadrinho pequeno da exposição, se esse era o caso de proibirem – sempre esse verbo – a entrada de sacolas maiores). Vá lá, fomos para o guarda-volumes.
Depois de uns dez minutos que estávamos lá dentro, nova abordagem.

- Por gentileza, senhores, é proibido tirar fotos.
- Ah, sim, obrigado, mas não estamos tirando fotos.
- É proibido falar ao telefone celular, também.
- Certo, não estamos falando.
- É proibido atendê-lo, senhor.
- É mensagem!
- Não se pode enviar mensagens, senhor.
- Não enviamos. Recebemos.
- Não se pode usar o celular aqui dentro. Obrigado.

Pouco ruborizados e muito perplexos, deixamos pra lá e seguimos apreciando as fotos do New York Dolls, enquanto ainda ríamos da mensagem enviada pelo amigo. Nossas risadas, inclusive, incomodavam o segurança que não gostava de celulares. Fo-da-se!

Exposição bacana, mas, como nem tudo é perfeito, entre o Iggy Pop, o Kiss, o Led Zeppelin, o Lennon e os Ramones, estava... não, não a Yoko... estavam os seguranças, vulgo mibes, falsos donos da ordem, capanguinhas de terno e gravata. Num outro momento de imensa viagem ao olhar para todos aqueles registros, chegou outro rapaz muito educado e me pediu para jogar o chiclete fora. “É proibido, senhor”, explicou.

Não era possível. Não era possível. Que merda era aquela? Uma piada? Uma pegadinha? Numa exposição de rock, R-O-C-K, meu amigo, era tudo tão gay assim? Mas, de novo, tentei me convencer de que as coisas faziam sentido. “Bom, é verdade, imagina se alguém resolve grudar um chiclete nessas preciosidades?”, ao que me minha amiga responde “Ué, você também poderia grudar uma caquinha de nariz, e isso eles não podem te impedir de trazer”. Concordei plenamente e guardei o chiclete na boca.

Durante todo o passeio foi assim, seguranças rondando a menos de dois passos, medindo dos pés à cabeça, à espera de qualquer deslize (ou não), de qualquer pecado grosseiro dos visitantes, como farejadores que, na falta do que fazer, procuram o que fazer para justificar o dia e passar o tempo. Tudo bem, de novo, DE NOVO, dá pra entender. Deve ser chato pacas ficar naquele lugar meio mórbido e cheio de fotos de caras que eles não têm a mínima idéia do que significam.

Como bons cães de guarda, eles cumprem ordens, apenas. Não sejamos injustos. Mas que diriam, então, se, por acaso, eu quisesse entrar com um cachorro-quente igual ao daquele cara que estampa todos os anúncios da exposição? Sid Vicious, né? Não rolaria. Só do lado de fora. Pendurado.

Viva o velhinho molenga e seus seguidores cretinos.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

E por isso é que eu gosto de pop

São as duas melhores músicas novas que ouvi nos últimos tempos, é isso.

Porque eu não gosto de rock, parte 2



Losing My Edge



Yeah, I'm losing my edge.
I'm losing my edge.
The kids are coming up from behind.
I'm losing my edge.
I'm losing my edge to the kids from France and from London.
But I was there.

I was there in 1968.
I was there at the first Can show in Cologne.
I'm losing my edge.
I'm losing my edge to the kids whose footsteps I hear when they get on the decks.
I'm losing my edge to the Internet seekers who can tell me every member of every good group from 1962 to 1978.
I'm losing my edge.

To all the kids in Tokyo and Berlin.
I'm losing my edge to the art-school Brooklynites in little jackets and borrowed nostalgia for the unremembered eighties.

But I'm losing my edge.
I'm losing my edge, but I was there.
I was there.
But I was there.

I'm losing my edge.
I'm losing my edge.

I can hear the footsteps every night on the decks.
But I was there.
I was there in 1974 at the first Suicide practices in a loft in New York City.
I was working on the organ sounds with much patience.
I was there when Captain Beefheart started up his first band.
I told him, "Don't do it that way. You'll never make a dime."
I was there.
I was the first guy playing Daft Punk to the rock kids.
I played it at CBGB's.
Everybody thought I was crazy.
We all know.
I was there.
I was there.
I've never been wrong.

I used to work in the record store.
I had everything before anyone.
I was there in the Paradise Garage DJ booth with Larry Levan.
I was there in Jamaica during the great sound clashes.
I woke up naked on the beach in Ibiza in 1988.

But I'm losing my edge to better-looking people with better ideas and more talent.
And they're actually really, really nice.

I'm losing my edge.

I heard you have a compilation of every good song ever done by anybody. Every great song by the Beach Boys. All the underground hits. All the Modern Lovers tracks. I heard you have a vinyl of every Niagra record on German import. I heard that you have a white label of every seminal Detroit techno hit - 1985, '86, '87. I heard that you have a CD compilation of every good '60s cut and another box set from the '70s.

I hear you're buying a synthesizer and an arpeggiator and are throwing your computer out the window because you want to make something real. You want to make a Yaz record.

I hear that you and your band have sold your guitars and bought turntables.
I hear that you and your band have sold your turntables and bought guitars.

I hear everybody that you know is more relevant than everybody that I know.

But have you seen my records? This Heat, Pere Ubu, Outsiders, Nation of Ulysses, Mars, The Trojans, The Black Dice, Todd Terry, the Germs, Section 25, Althea and Donna, Sexual Harrassment, a-ha, Pere Ubu, Dorothy Ashby, PIL, the Fania All-Stars, the Bar-Kays, the Human League, the Normal, Lou Reed, Scott Walker, Monks, Niagra,

Joy Division, Lower 48, the Association, Sun Ra,
Scientists, Royal Trux, 10cc,

Eric B. and Rakim, Index, Basic Channel, Soulsonic Force ("just hit me"!), Juan Atkins, David Axelrod, Electric Prunes, Gil! Scott! Heron!, the Slits, Faust, Mantronix, Pharaoh Sanders and the Fire Engines, the Swans, the Soft Cell, the Sonics, the Sonics, the Sonics, the Sonics.

You don't know what you really want.

Porque eu não gosto de rock, parte 1



(I’m Gonna Follow Your) Star Trail

I walk the tightrope
That's on fire at both ends
And if one side goes out
I'm gonna light it up again

Cos I need to be wild
I need to be your wild child
And I need to be yours
Cos you're the one that I adore

I'm gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail
Gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail

I cross the freeway
Where the cars go fast at night
I banish unbelievers
Cos they don't like it when I fight

But I need to be leashed
Cos trouble follows when I'm free
And I need to be yours
Cos you're the one that I adore

I'm gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail
Gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail

Green eyes, no surprise
I'm not unique
But it's all that I need right now
Sunrise - more goodbyes
Take from my heart
But without you I'll fall apart

I'm gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail
Gonna follow your STAR STAR STAR STAR TRAIL TRAIL TRAIL TRAIL
Knowing that I'll fail

sábado, 16 de junho de 2007

Estado de grande inquietude que parece apertar o coração

O céu desaba.
O trem não chega.
O guarda-chuva que não abre.
Um dia, tudo desanda.
A porta emperra, a casa cai.
Promessas se esvaem, o amor acaba.
Por isso, e apesar disso,
sou um sobreposto de ilusões.
Angústias, desejos, frustrações,
fantasias, medos, euforias.
Se, de repente, eu pudesse me livrar de tudo,
seria leve como um nada;
nem existiria.
Mas não.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Uma história (verdadeira)

Era para ser um comentário ao post do Eduardo, mas ficou comprido. Fica como minha primeira contribuição.
**
Mais ou menos na mesma época do Phono 73 e da censura ao "Cálice", Alexandre Vanucchi Leme, estudante de Geologia da USP, havia sido morto no DOPS. Um grupo de estudantes procurou o Gilberto Gil, que dava show também em São Paulo, para que ele fizesse um show na USP em solidariedade. Gil, a princípio não quis se envolver, mas diante da insistência dos estudantes, ele topou fazer uma apresentação modesta, só ele e o violão, pois não tinha como pagar para toda a banda ir com ele e os estudantes também não tinham como bancar equipamento e cachê. Pois bem, ele foi, com o violão, numa sala de aula na Poli, lotada, com gente pendurada pela janela e sentada no chão (incluindo esta que vos fala, com dez anos incompletos e junto com os pais; minha irmã mais velha estava naquele grupo de estudantes).
Era para ser um show breve, mas ele foi se animando e cantando, naquela sala meio escura, naquela USP meio deserta (era um sábado ou domngo, entre o meio e o final da tarde). Às tantas, alguém da platéia pediu que ele cantasse "Cálice", ele recusou, dizendo que não podia (já tinha rolado a história com o Chico no Phono 73), que não sabia a letra... Mas alguém, na platéia, tinha uma cópia da letra, na verdade, comearam a circular algumas cópias das letras e, de novo, diante da insistência, o Gil topou -- só tocar a música, sem cantar. E aquelas cópias da letra, surgidas sabe-se lá de onde, circulando pela platéia, permitiram que o público, aos poucos, formasse um coro poderoso de "cale-se".
Se esse foi o momento político meio arrepiante (33 anos depois, não ouço essa música sem evocar a cena, às vezes como apenas cenário, às vezes com um nó na garganta), em um outro episódio desse mesmo show, Gil conseguiu botar a platéia em uma espécie de transe religioso (era seu período mais místico, num sincretismo afro-zen-hippie maluco). Ele começou a contar que tinha ido ao carnaval de Salvador, procurar os afoxés, e tinha encontrado os grupos esvaziados, desanimados, desesperançados: "afoxé tá prá acabar", ninguém mais quer ver nem participar.
E isso vai virando uma introdução longuíssima, a voz do Gil como a dos pretos velhos do afoxé, num português com acento iorubá, repetindo numa espécie de mantra "afoxé tá prá acabar", "afoxé tá prá acabar", a batida dos dedos no violão como a imitar os atabaques ("os atabaques batendo, os agogôs cantando e a gente se arrepiando") e movendo o corpo como a receber um santo, até que finalmente ele começa a cantar "Filhos de Gandhi" ("ai, meu pai do céu, na Terra é Carnaval, manda o pessoal, manda descer para ver Filhos de Gandhi/ Iemanjá chama Xangô, Oxóssi também/manda descer para ver Filhos de Gandhi").

naquele momento solitário (na USP, nos anos 70, havia uma sensação de isolamento muito grande; o "outro lado" da ponte não era assim tão habitado quanto é hoje e, além da geografia urbana, havia outras razões, ideológicas, para a universidade, como foco de resistência cultural e política, estar apartada; evidentemente, essa elaboração é posterior, mas a sensação é da minha memória) e escuro (por causa da luz da tarde que se esvaía, das celas mal iluminadas onde aconteciam os terríveis interrogatórios, das trevas metafóricas que estavam por todas as letras de música e todos os escritos de jornal), invocar os orixás parecia dar transcendência ao ato coletivo de ouvir música.

**

Toda essa história está contada com mais detalhes em “Cale-se”, livro-reportagem de Caio Túlio Costa publicado em 2003. Para mais informações, tem um artigo bacana sobre o livro publicado no Observatório da Imprensa, outro do Mário Sergio Conti não tão bacana assim e ainda um da Folha, escrito pelo Marcelo Rubens Paiva que, como eu, era irmão mais novo dos "agitadores" de 73.

terça-feira, 12 de junho de 2007

O CARA CERTO NO LUGAR CERTO (e com um tanto de talento)

O movimento punk nasceu na Inglaterra como um protesto social contra o desemprego, a qualidade de vida, a economia recessiva e os insucessos políticos para solucionar tais problemas. Certo? Absolutamente errado, segundo o livro “Mate-me Por Favor”, uma coletânea de entrevistas com os personagens principais dessa história (os músicos, as groupies e os agregados), organizado em forma de diálogo por dois jornalistas. A edição é impressionante e faz com que a verdade vá aparecendo pela repetição, entre uma porção de mentiras, aumentos, e relatos de gente que estava, na maior parte do tempo, em outra dimensão.

O punk, de fato, ou pelo menos suas raízes, estão nos Estados Unidos, com bandas de jovens arruaceiros e perdidos que tocavam em pequenos clubes no começo dos anos 70. Daí vieram os Stooges de Iggy Pop, o Televison, Dead Boys, Dictators, New York Dolls, Ramones, Blondie e cia. E é aí que entra Bob Gruen, fotógrafo que ganhou fama documentando shows, backstages, festas, orgias, intimidades e momentos de criação destes que viriam (para a surpresa deles, que se julgavam “ratos de porão”) a fazer História. Algumas de suas fotos mais famosas, como a de John Lennon com a camiseta “New York” (dada a ele pelo próprio Gruen), estão na exposição Rockers, na FAAP, até 1º de julho (http://www.bobgruen.com/events.htm).

Suas primeiras fotos foram tiradas assim, aos 20 anos, desempregado, por diversão, do ídolo Bob Dylan. Gruen conseguiu um passe livre para ficar lá na frente junto com fotógrafos profissionais no Newport Folk Festival, em 1965 - alguém imagina isso acontecendo hoje? -, aquele em que Dylan empunhou uma guitarra e disse “rock’n’roll é folk music”, e foi vaiado até sair do palco.



Cercado de amigos com bandas de rock, estas desconhecidas na época e hoje, Gruen começou a fotografá-los nas noitadas e documentar os shows. Um desses amigos arrastou-o para o show de Tina Turner e Ike, em 1970, e, imaginem, era um show pequeno, de início de carreira da dupla, no Queens. Gruen conseguiu um lugar bem na frente e tirou várias fotos de Tina dançando na luz estroboscópica, o que deu criou um efeito impressionante nos negativos preto e branco. No show seguinte, ele levou as fotos para mostrar para os amigos, que, na saída, praticamente jogaram Gruen em cima de Ike para que mostrasse seu trabalho. E Tina adorou. Essas fotos, aliás, estão logo no início da exposição, com um metro de altura.



O “cara certo no lugar certo”, como ele mesmo já disse, virou depois melhor amigo e fotógrafo oficial de John Lennon e Yoko Ono, na época em que estavam em Nova York. Depois foi conhecendo produtores, gravadoras e jornalistas, e conseguindo trabalhos aqui e ali, com os Bee Gees, Elton John, etc.

Gruen conta* como ficava até a uma da manhã fotografando para ganhar dinheiro com os “irritadinhos” da indústria da música (ele não cita nomes) e depois ia ao centro da cidade, ao Max’s ou ao CBGB’s, os clubinhos underground, tomar uma cerveja, ficar com os amigos e ver a banda, geralmente garotos desempregados que aprendiam dois ou três acordes e formavam um grupo para ganhar o dinheiro da noite. Com os NY Dolls foi assim, com Patti Smith também, Ramones idem, Debbie Harry ibidem. Bem, o resto já se sabe: o público cresceu, surgiram os contratos, eles ganharam o inesperado dinheiro, destruíram hotéis, fizeram turnês pela Europa, e muitos morreram de acidentes ou overdose. Ah, Gruen também viajou muito pela Inglaterra, acompanhou os Sex Pistols (a foto de Sid Vicious lambrecado de cachorro-quente está na fachada da FAAP, e também integra a exposição) e o conturbado relacionamento de Sid com Nancy Spungen. No livro “Mate-me Por Favor” existem relatos que contrariam a versão oficial de que ele a teria matado durante uma festa regada a drogas em um quarto do Chelsea Hotel. O próprio Bob Gruen disse que “vicious” (algo como “malicioso”) era totalmente o contrário do que era Sid, apaixonado e medroso.



Bob Gruen tinha duas vantagens que provavelmente não percebia na época: era um dos únicos que “perdia tempo” fotografando músicos esquisitos, que, por serem proposital e assumidamente esquisitos (e, achava-se, fadados aos pequenos palcos das lanchonetes improvisadas até terem um emprego “decente”) se deixavam fotografar nas situações mais esdrúxulas e naturais do seu cotidiano. Bem, e tinha o fato de ele ser amigo de todos eles, presente em todas as festas, shows e viagens. Gruen vendia algumas dessas fotos para a Creem e a Rock Scene, revistas respeitadas no meio. Na época, só no meio. Hoje, Bob faz exposições. Quando surgiu a câmera de vídeo, ele começou a filmar os shows, e as bandas se empolgavam para ver os próprios shows, capturados em vídeo pela primeira vez. Hoje, Bob vendeu alguns trechos para documentários da BBC e da Warner. É, o mundo mudou.


*Informações tiradas da entrevista com Carlo McCormick (http://www.bobgruen.com/interview.htm) e do livro “Mate-me Por Favor”, de Legs McNeil e Gillian McCain – que, aliás, fundaram a “Punk Magazine”, revista e fanzine do clubinho e que, dizem eles, cunhou o termo “punk” (http://www.nyrock.com/killme.htm).

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Censura: violência e silêncio na música Cálice

A censura oficial do regime militar brasileiro é motivo de diversas discussões entre artistas e músicos brasileiros. Se para alguns, como o maestro Júlio Medaglia, ela incentivou a criatividade, para outros, como Chico Buarque, ela significou um obstáculo, uma pedra no caminho da produção artística e intelectual brasileira.

Chico revelou em várias entrevistas que o controle externo do conteúdo de suas canções interferia na criação, ceifando muitas idéias e possibilidades de uma música. Ademais, os artifícios para se driblar a censura, como o uso de metáforas, deixaram, muitas vezes, tão intrincados os sentidos das letras que atualmente o próprio compositor não recorda o sentido de determinadas passagens. Chico Buarque representou em diversas músicas esta opressão sentida pela censura sistemática que sofria e pela negação política de sua obra, vista pelo compositor como um roubo da própria voz.

Cálice, feita em parceria com Gilberto Gil, é um exemplo de música alegórica a respeito da censura e das dificuldades de se compor sob ela, podendo ser encarada como uma metalinguagem da palavra expropriada, pois trata da expressão contida, no limite levando ao silêncio. Na canção, a palavra cálice é repetida freqüentemente, adotando o sentido e a sonoridade de cale-se, representação da repressão sobre a produção cultural – a manifestação artística calada arbitrariamente pelo Estado.

Na música, o silêncio imposto torna-se, progressivamente, mais violento a cada estrofe, como uma censura que vai se institucionalizando, profissionalizando e tornando-se mais forte. Na primeira estrofe há o verso: “mesmo calada a boca resta o peito”. Na terceira: “mesmo calado o peito resta a cuca”. E, por fim, na última, a própria cabeça é perdida, e sem ela há o silêncio total: “quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder seu juízo”. Nesse trecho, a boca pode ser encarada como simbolizando a capacidade de comunicação; o peito, a capacidade de sentir e a cabeça a capacidade de pensar, ou seja, gradualmente extinguiram-se as próprias faculdades humanas, a impossibilidade de manifestação do pensamento por meio da palavra anula o próprio indivíduo, decapita o artista.

A composição, gravada em 1973, parece dialogar diretamente com o governo Médici, que usou, além da censura, a tortura e a morte para calar os chamados subversivos, ou seja, aqueles que ousavam falar. O verso “silêncio na cidade não se escuta” mostra que existiam muitas vozes querendo se expressar, porém a situação as obrigava a não se pronunciar, a palavra não saía da garganta, pois existia “tanta mentira, tanta força bruta”, ou seja, a ameaça explícita e velada de uso da violência contra os opositores abafou as vozes das cidades.

A violência volta a se relacionar com o silêncio nos versos “como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado”. Acordar calado é difícil, mas necessário, pois se não se cala, corre-se o risco da danação noturna, isto é, durante a noite realizavam-se muitas das prisões políticas, longe dos olhos dos “cidadãos de bem”, podendo culminar em tortura e até em morte, encaradas, nessa análise, como representadas pelo “grito desumano”, o grito daqueles que perderam a humanidade pelas mãos dos torturadores, mas que no sacrifício – assim como nos sofrimentos de Jesus Cristo na cruz, tema sugerido pela repetição das palavras pai, vinho, sangue e cálice – se fazem ouvir.

Na quarta e na quinta estrofes é possível interpretar o sentido dos versos como uma tentativa do autor mostrar que, apesar da “palavra presa na garganta”, há a possibilidade de resistência. “De muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta” é a imagem de um Estado gigantesco, invasor dos âmbitos privados, crescendo ainda mais, gerando sua própria contradição, a faca que de tanto cortar perde sua utilidade. Enquanto o quarteto “esse pileque homérico do mundo / de que adianta ter boa vontade / mesmo calado o peito resta a cuca / dos bêbados do centro da cidade” evidencia um mundo ao avesso – a ditadura que destruiu a democracia em construção dos anos 1950 e 1960 -, um mundo bêbado, fora de si, onde apenas a vontade ou a idéia de mudar não bastam e onde os que pensam, aqueles que ainda têm cuca, estão bêbados com o regime, isto é, as classes médias dos centros das cidades iludidas com o crescimento econômico, classes que emperram a mudança. Todavia elas perderão a cabeça, segundo a vontade do autor, na estrofe seguinte.

Quando se diz “quero perder de vez tua cabeça” refere-se a esse teu, um interlocutor elíptico, podendo ser visto como esta cabeça dos centros das cidades e dos donos do poder, Chico pode estar referindo-se a essas classes médias que têm papel fundamental na manutenção do regime e contribuem significativamente com a formação, consolidação e reprodução de valores favoráveis ou geradores da crença sobre este sistema político. Então perder tua cabeça adquire um valor de negação da ilusão, dos valores e da crença no status-quo, “minha cabeça perder teu juízo”.

Nos dois primeiros versos da última estrofe parece existir uma chama de esperança ou a tentativa de retirar o véu ideológico desse governo que provoca o silêncio para conter a reação. “Talvez o mundo não seja pequeno” procura quebrar certa visão lacônica e imediatista – geradora de conformismo, própria das camadas sociais beneficiadas pelo “milagre econômico” – e mostrar a vastidão do mundo, a existência de inúmeras experiências políticas diferentes, outros modelos de regime, formas diferentes de se organizar um país e múltiplas soluções para os mesmos problemas, que não necessariamente passem pela violência. No verso seguinte, “nem seja a vida um fato consumado”, existe a tentativa de quebrar o conformismo e a apatia e mostrar que as coisas são mutáveis, que a vida dos homens é um processo, é história, não está escrita e não é monolítica, sendo passível, portanto, de uma ação transformadora.

O mundo que se espera com a transformação é aquele que permita “inventar o próprio pecado” e “morrer pelo próprio veneno”, ou seja, permitir ao povo realizar-se, governar-se, tentar e pagar pelo próprio erro, como nos regimes democráticos, e não impor a verdade através de um Estado centralizador.

A raiva e a vontade de fugir desse governo opressor aparecem já na primeira estrofe em “de que me serve ser filho da santa / melhor seria se filho da outra”, pois as rimas são organizadas de forma a induzir o leitor a construir um palavrão. As palavras finais dos versos anteriores são: labuta, peito, escuta, santa, logo em seguida aparece outra, soando estranha ao ouvido.

Uma possibilidade para se entender esta agressividade é a censura sistemática da obra de Chico Buarque, principalmente no governo Médici. Porém, é possível perceber na canção que o foco não está composição musical, mas possui um caráter mais amplo.

É difícil separar, mesmo um pouco distante historicamente, o que foi incentivado pela censura e o que foi impossibilitado, contudo é passível de reflexão o fato de que, principalmente a partir dos anos 1950, o Brasil sofreu um momento de efervescência cultural que durou, pelo menos, até meados dos anos 1970. Então, a censura, por si só, não explica o surgimento de grandes compositores populares sob a ditadura militar, e buscar nesse instrumento de um governo a resposta para manifestações artísticas profícuas do período é no mínimo especular com a História.

O que está em jogo quando se fala em censura é a relação estabelecida entre o público e a coisa pública, ou seja, aquilo que deveria ser de acesso geral, pois diz respeito à própria sociedade, sua organização e sua reprodução, contra interesses particularistas, que estabelecem seus domínios com a apropriação do pertencente à coletividade. Dizendo respeito tanto a conteúdos – artísticos, culturais, jornalísticos, de transparência (só para usar uma palavra da moda) - como a direitos e deveres estabelecidos em conjunto (não em um sentido conservador, de ordem, mas de reconhecimento das desigualdades e da busca de uma saída para elas, ou os velhos vocábulos: universalização, acesso, distribuição, equidade).

E esta ligeira definição talvez ajude a mostrar que a composição de Chico Buarque e (do velho) Gilberto Gil não esteja tão velha assim. Quantos cale-se você não ouviu ultimamente? Do congresso? Da mídia? De empresas? De qualquer pessoa que tivesse algo a comprovar? A institucionalizada não é a forma mais refinada de censura.

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Abaixo, video da música Cálice tocada por Chico e Gil no festival PHONO 73, no Anhembi. A letra da canção havia sido censurada, juntamente com Anna de Amsterdã, de Chico, mas os artistas decidiram subir ao palco e apresentá-la com a letra distorcida. Porém, os policiais exigiram que a mesa cortasse os microfones. No DVD é possível ouvir Chico dizer: "Estão me aporrinhando muito. Esse negócio de desligar o som não estava no programa. Claro, estava no programa que eu não posso cantar a música nem "Anna de Amsterdam". Não vou cantar nenhuma das duas. Mas desligar o som não precisava não".





domingo, 3 de junho de 2007

Memórias de McCartney

Certa vez perguntaram ao Paul (Sir Paul, desculpe) se um dia ele pretendia parar de compor. Ele não gostou da pergunta. Agora, mesmo aos 64, parece ter o entusiasmo que tinha quando, ao fim dos Beatles, se trancou num estúdio para compor e gravar todos os instrumentos de um novo projeto solo. Mas apenas parece. De lá pra cá há um enorme abismo.

Em 1970, entre uma dose e outra de uísque, ele brincava com a aparelhagem de seu home studio. Aproveitava o sossego de sua fazenda na Escócia para experimentos. Incorporava a espontaneidade. Criava solos de bateria e gravava sua respiração ofegante conforme aumentava a pressão sobre os tambores. Não tinha preocupações com Heather Mills, na época uma inofensiva recém-nascida. Havia Linda...O patrimônio criado pelos Beatles permitia que Lennon e McCartney - o Harrison também - seguissem em frente, sozinhos. A cobrança ficava entre eles: qual Beatle é mais criativo (leia-se: vende mais – embora não seja a mesma coisa) em carreira solo?

Porém, conforme alertava Bob Dylan, os tempos estão mudando! O Sargento Pimenta fez 40 anos (ontem), e nesta semana é lançado Memory Almost Full, o 21º álbum solo de McCartney. E lá vamos nós - todos nós de corações solitários - ver o que o ex-Beatle (não gosto do prefixo. Não é como ser um Menudo. Uma vez Beatle, sempre Beatle!) anda fazendo. E qual é a reação ao ouvir Dance Tonight, a primeira faixa? Bastam quinze segundos para um pensamento: “Esse é o mesmo cara que participou da quarentona obra-prima do rock?”.

Se os tempos mudaram, e principalmente as circunstâncias para compor, outras coisas continuam como antes. Em entrevista recente, Paul diz usar os mesmos pequenos truques para composição de quando assinava com John Lennon. E, de fato, algumas lembram Beatles, outras Wings, e também um pouco de seus últimos trabalhos. Veja lá nas velharias dos Wings se já não foi gerado material parecido com Dance Tonight. É como a roupagem de Mull of Kintyre (1973) substituindo violão por bandolim, e gaita-de-fole por...assovios. Logo, não deveria surpreender, mas, pode decepcionar quem procurava algo revolucionário (teria como?).

A diferença é que em 1973 era possível lançar Mull of Kintyre num compacto para promover um álbum. Mas, quem comprava o novo disco não ouviria Mull of Kintyre! Estava apenas no compacto - por sinal, o mais vendido da história. Hoje a estratégia é diferente. Paul, além de todo talento musical, também é conhecido como bom marketeiro (sem conotações pejorativas, por favor). Sabe criar singles e fazer vender. Ou, pelo menos, sabia...

Dada a extinção dos compactos, Dance Tonight foi “promovida” com grande modernidade: o YouTube. A palavra acima não à toa está entre aspas. Muitos fãs vão considerar a música um atentado contra a imagem do Memory Almost Full. Um amigo, fanático por Beatles, disse que a ouviu e se desinteressou para conhecer o resto. Digo, “o resto”.

As comparações com seu último álbum, Chaos and Creation in the Backyards (2005), sobre qual é melhor, foram imediatas. Embora inevitável, a comparação não é justa. Ouvia-se dizer antes do lançamento de Chaos: “um dos melhores trabalhos de McCartney”; “uma prima de Blackbird entre as músicas” (yeeeah, o marketing deu certo!). Antes do lançamento foi criada uma boa expectativa, sem nenhuma faixa ter vazado na Internet! A estratégia funcionou, não em termos de vendas (afinal, os tempos mudaram), mas, foi bem aceito – e o álbum é realmente bom.

Memory Almost Full chega discreto, sem alardes. Não se esperava o lançamento de dois álbuns em um período tão curto (sem contar o Ecce Cor Meum, trabalho clássico lançado há poucos meses). Logo, a publicidade ficou por conta de Dance Tonight justamente no ano em que voltamos a falar de Sgt. Pepper. Ao contrário de Chaos, quem apenas ouviu o single chega com maus pressentimentos para conhecer “o resto”. Vista as circunstâncias desfavoráveis deste lançamento, resta o exercício de ouvir – o álbum, para o infortúnio de Paul, caiu na Internet semanas antes de ser lançado.

Não é preciso muito para perceber que a sonoridade (timbres, freqüência do microfone, a repetitiva ressonância da vogal ‘u’, etc) se assemelha com o Driving Rain, de 2001. Então, descobre-se que o produtor foi o mesmo, David Kahne. Na época de Chaos, muito se falou sobre Nigel Godrich, que já produziu o Radiohead, auxiliando e sabendo interpretar como as canções deveriam soar. Se existe alguém que mais teme comparações, este é David Kahne, que dispara numa entrevista ao jornalista brasileiro Claudio Dirani: “Este (o atual) é meu álbum favorito do Paul”. Percebem? É o mesmo marketing, talvez tardio. Se Nigel Godrich teve o prestígio de ser indicado por George Martin, dos Beatles, para o álbum de 2005, David Kahne não teve o mesmo mérito. E, antes de ser criticado, ele espertamente se defende: “Por favor, não use referências de outras músicas! Paul é diferente. Ele não resgata nada em seu passado. Compõe, toca e grava sempre pensando em criar algo novo”.

Embora minta, a defesa é compreensível. E eu, assim como ele, também evito comparações (mesmo porque Mull of Kintyre é melhor do que Dance Tonight (!!!!) ).

Agora, se sua admiração pelo Sir. não foi afetada, e você não pensa que ele seja apenas o Beatle romantiquinho, acomode-se numa poltrona tão convidativa quanto a estampada na capa do CD para uma audição. Ouça os riffs de Only Mama Knows, a tensão de House of Wax, os elementos clássicos e pseudo-eletrônico de Mister Bellamy, e a melancolia de You Tell Me. Quem sabe você não seja levado a pensar que os tempos não mudaram tanto assim.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

DISTANTES

Três anos depois de algumas cartas de amor e nenhum beijo sequer, eles se reencontram pela Internet. Haviam se formado há três meses.

- Nossa! Você??
- ?
- Tudo bem?
- Olá! Tudo bem. E você?
- Opa. Saudades, hein...
- É mesmo. O pessoal faz muita falta...
- É.
- Ainda tem visto alguém?
- Sempre que posso, vejo uns. Muito de vez em quando, outros.
- Ah. Eu, quase nunca.
- Sei.
- Precisamos combinar um boteco e reunir todo mundo.
- Com certeza!
- No próximo sábado, então, é legal pra você?
- Muito bom!
- Vamos combinar.
- Eu fecho.
- Legal. Mas e aí, tá na TV ainda?
- Ah, sim, ainda estou... de pouquinho em pouquinho.
- Mas você fica!
- Tomara.
- É.
- Soube, aliás, que a sua empresa fechou e...
- Pois é. De repente.
- Sério?
- Não pude nem recolher minhas coisas. O oficial de justiça baixou e não quis nem saber.
- Que coisa, hein!
- É.
- Você tem que vir pra São Paulo, o momento é agora.
- Eu sei. Preciso ir, mesmo. Preciso me organizar.
- Faça isso.
- Vou fazer. Estou esperando as coisas se acertarem um pouco.
- Que coisas?
- Sei lá.
- Entendi.
- Você pensa em fazer uma pós-graduação?
- Pós enquanto não.
- ...
- Foi uma piada.
- Ah.
- Entendeu?
- Péssima.
- Pra lembrar os tempos de faculdade.
- Você não muda, mesmo.
- Mas e você? Pensa na especialização?
- Gostaria. Mas primeiro tenho que me acertar, né?
- Com o quê, exatamente?
- Não sei, exatamente.
- Ué...
- Com as coisas.
- Entendi.
- Pelo menos pós enquanto, então, fica difícil...
- HAHAHA. Boa!
- Ai, pra te dizer a verdade, tô cansada dessa vida de desempregada, viu.
- É foda...
- Além de tudo, estou engordando horrores!
- Ah, vá... que engordando, nada. Você está ótima na foto aí do lado.
- A foto é velha!
- Eu sei. Foi outra piada.
- Ah...
- É a foto de Campos.
- Ela!
- Viu?
- Oi?
- Eu lembro...
- Você já foi pra lá?
- Não. Eu lembro da foto, disse.
- Preciso ir.
- Pra lá?
- Pra onde?
- Pra Campos, ora.
- Não, né.
- Pra onde?
- Pra lá, que eu digo, é pra lá. Pra cozinha, pra sala, sei lá.
- Entendi.
- Sair disso aqui um pouco.
- Mas já?
- É.
- Ah.
- Ficar sem fazer nada cansa.
- É. Também vou.
- Ficar sem fazer nada?
- Não. Pra lá.
- Pra Campos?
- Não, né! Pra...
- Eu sei. Foi uma piada.
- Você não muda, mesmo.
- Olha quem fala.
- Eu? Ninguém muda.
- Verdade.
- Então...
- Beleza. Tchau tchau.
- Promete pra mim que nós vamos nos ver.
- Claro.
- E vamos combinar, pô!
- Vamos sim! No próximo sábado é perfeito...
- Fechado.
- Mesmo?
- Opa.
- Legal.
- Agora eu vou. Preciso ir.
- Ok, Beijos.
- Té mais.
- Sábado.
- Té lá.

No próximo sábado seria muito difícil, ele previu (com alguma culpa). Ela não iria de jeito nenhum, mesmo que ainda nem tivesse pensado nisso.

domingo, 27 de maio de 2007

Esse tal de ROQUENROU

Rock é música ou atitude? Os ponderados diriam que é uma mistura dos dois. Os rebeldes, com ou sem causa - há várias causas, faltam rebeliões -, diriam ser atitude. Os apaixonados acreditam que é música.

É que hoje a velocidade é outra, como disse o jornalista-cultural-que-está-em-todos-os-lugares Lúcio Ribeiro: “A velocidade da informação está beirando o absurdo. Quem fica parado dois segundos é poste. Sabe o disco do LCD Soundsystem que ainda nem saiu? Está velho. Lança outro, James”. Pois é, tanto para se desenhar uma trajetória quanto para descobrir – ou criar – novas bandas de sucesso, a velocidade atual é galopante.

Quando o vovô rock nasceu, há quase sessenta anos, conseguir um disco era uma odisséia para os ouvintes e saber o que faria sucesso era pisar em ovos para as gravadoras. Hoje, a questão não é saber o que faz sucesso, trata-se muitas vezes de criar o sucesso, direcionar o gosto do público e colocar a etiqueta poprock – junção que já dá uma boa medida do que o rock se tornou, não? Pop é o contrário de atitude, o contrário de revolução, o contrário de perigoso. É pop. Ou alguém acredita na rebeldia e nos cabelos cuidadosamente desarrumados do RBD? Na atitude de Avril Lavigne, a skatista com carinha de má mais bem maquiada e chapinhada da história?

Tá certo, exemplos fáceis. Mas as bandas-promessa se multiplicam como vírus de gripe! É Franz Ferdinand, Moptop, Klaxons, CSS, Bloc Party, Arcade Fire, Kaiser Chiefs, Clap Your Hands Say Yeah, Arctic Monkeys, Wolfmother, Dan Le Sac, Keane, Kassin (queeem?). Fale a verdade, pra acompanhar tudo isso não dá pra ouvir mais de 30 segundos de cada música nova, como naquele aparelhozinho que só toca um sample de cada música nas Fnacs. Ouvir uma música duas vezes então, nem pensar. Não dá tempo. Está velha. Não é que não haja coisa boa, claro que há, ou deve haver. Mas se perde no mar de informação, propaganda, tietagem, martelação, alarde, exposição, picaretagem, photoshop (de imagem e de som), estratégia, tempo de vida.

O rock já foi perigoso, lá quando as mães de adolescentes se apavoravam com os rebolados de Elvis (cujos discos gastavam e riscavam de tanto ouvidos), com as calças rasgadas e cabelos sujos dos Ramones, com a androgenia brilhosa de David Bowie, com o efeito que os Beatles tinham sobre suas filhas, com a revolução dos sentidos que os Doors proporcionaram. Não é saudosismo, é questão de timing. O movimento rock passou, o perigo se foi, sobrou a boa música. O jazz também já foi perigoso, quando os negros começavam a tomar espaço numa sociedade segregada, nas figuras de Glenn Miller, Billie Holiday, Louis Armstrong e Ella Fitzgerald – só quatro exemplos, pra tentar resumir o irresumível. Não é mais, é música para se ouvir com whisky e público seleto.

Perigoso é o que dá voz ao que era ignorado. Hoje, é o funk, é o rap, é música (?) que vem de quem tem com o que se revoltar: desigualdade social, na voz das minorias. Perigoso é filho de empresário ouvir que, para seu pai enriquecer, muita gente teve que empobrecer. Perigoso é filha de rico subir o morro porque a vida lá parece mais emocionante que ser mimada. Perigoso, no sentido de abalar as bases do cotidiano, é ver que aqueles que estão à margem da sociedade (como os negros estiveram antes do jazz, e os jovens antes do rock) estão ganhando espaço, pelo menos na discussão. E que o rock é o “grito da borboleta”, como cantou Jim Morrison em “When the Music's Over”.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Me apresentando-se

Não faço parte dos “quatro amigos”, que tiveram a idéia de criar o blog e colocar aí os seus textos, pra quem quiser ver. Vontade eu até tive, uma vez ou outra, de fazer algo desse tipo, mas, para o bem da verdade, me faltava coragem. Eu ia empurrando com a barriga, deixando pra “um dia”, quem sabe, o compromisso de escrever pra valer e, mais ainda, de permitir que as pessoas lessem - e gostassem ou desgostassem. Coisa que quem se mete a escrever sabe bem como é.
Quando me chamaram pra também escrever pro blog, foi como se, como num anúncio publicitário, alguém dissesse: “Helen, a hora é agora”. Até me imaginei sendo chacoalhada pelo “anunciador”. Coisa besta de quem tem mania de ficar matutando sobre tudo. Fiquei pensando em milhares de coisas, de implicações, mas aceitei, num misto de medo e euforia. Outra coisa besta, já que escrever em blog é coisa que muita gente faz, sem ser acometido de mal algum.
Por um lado, era bom saber que, por eu ter me comprometido a postar alguma coisa toda semana, eu finalmente desengavetaria aquela infinidade de papeizinhos que vêm sendo guardados ao longo do tempo, com projetos, inícios e trechos de contos, crônicas, poemas e sei lá mais o quê. Por outro, vinha o medo de ter que finalmente me sentar de frente pro computador e dizer: “Ok. Vou escrever, porque esse é o meu negócio”. E não escrever jornalisticamente, pra informar, denunciar, ou tentar mudar o mundo – delírios que jovens jornalistas costumam ter - mas, sim, escrever por escrever, o que me viesse à cabeça. Escrever o que me vem à cabeça já é tarefa difícil pra burro, porque a cabeça da gente parece que é uma coisa confusa que só. Publicar, então, é um feito. É como se eu colocasse o dedo no buraco da fechadura, não pra acabar com a graça de quem quer espiar, mas, isso sim, pra depois abrir a porta de vez e dizer: “Taí”.
Cada texto meu, cada rascunho, cada rabisco, por mais que trate de outras pessoas, ou de coisas que me são alheias, está carregado de mim. Dos meus sonhos, das minhas opiniões, dos meus medos, das minhas fantasias, dos meus delírios... Não há como negar. É um misto daquilo que eu penso sobre as pessoas, sobre o mundo, sobre mim mesma. Em cada palavra eu me denuncio. A cada palavra eu vou me achegando à luz dos holofotes e todos vão vendo com maior nitidez como eu realmente sou. E quando eu já estiver espremendo os olhos, por conta da luz forte, vocês podem descobrir que eu não sou em nada parecida com o que aparentava ser. Posso ser melhor ou pior. E vocês podem: ou dar de ombros, ou, se forem do tipo de pessoa que fica matutando sobre tudo, ficar matutando sobre isso. Agora, que resolvi escancarar a porta, não me importo.

Cada palavra de um texto não está lá por acaso. Cada palavra é escolhida a dedo, é pescada no meio de todas as outras, por melhor traduzir aquilo que até então apenas fluía, que até então era inominável. Quem pelo menos uma vez se decide a escrever, tem a difícil, mas excitante, experiência de transformar em palavras o que antes era pensamento, sentimento.

Já que vou me "desnudar" daqui pra frente, vou aos poucos... Um mini-conto:

Relacionamento

Olhando a mulher vestir-se, notou um roxo em seu braço. Não reconheceu.
-Ela deve ter outro homem!
Foi tirar satisfações.



quinta-feira, 17 de maio de 2007

DOIS GÊNIOS - INTRODUÇÃO

O que é ser genial? Ou, antes, quais são os fatores constitutivos da genialidade? Nos discursos individualistas e liberais a categoria gênio aparece como algo em si, ou seja, o gênio guardaria em suas características internas a explicação para sua própria existência. Desta maneira, este indivíduo aparece como alguém em separado do universo social e da história, distanciado das condições que o permitiram diferenciar-se e destacar-se da maioria, como o se o terreno do trabalho e do estudo aplicados para o desenvolvimento da intelectualidade, habilidades técnicas, destrezas, acúmulo de conhecimentos, sublimação de sentimentos, etc., fosse soterrado por uma série de variáveis metafísicas, como dom, talento, inspiração, isto é, qualidades inatas surgidas quase como um sopro divino.

Não quero afirmar que o aspecto do suor desapareça, mas ele é reduzido à quase inexistência quando a explicação dirige-se ao campo dos ímpetos e lampejos criativos surgidos diretamente da própria individualidade, como se houvesse uma separação entre homem (mundo) e o gênio (indivíduo único), e não uma relação. Este é o erro de muitos biógrafos, que centralizam suas obras a partir da perspectiva estrita, tanto psicológica quanto narrativa, do seu objeto de análise, acabando por desconsiderar o contexto, a formação e as condições históricas que permitiram a uma determinada pessoa realizar um certo trabalho.

A tese deste texto é: não é o indivíduo que determina a si mesmo, ou seja, não é o gênio que se constitui enquanto tal, mas uma série de fatores, tanto sociais e históricos quanto psicológicos, constituídos enquanto tensões, relações, conflitos e contradições que formam os sujeitos e determinam o escopo e a profundidade de suas ações, de sua intervenção no mundo. Da mesma maneira, essas características são parte da forma como os tidos gênios são encarados em cada momento histórico.

Para discutir este assunto, abordarei uma área que talvez seja a mais suscetível ao reconhecimento de gênios: a arte, neste caso, a música ocidental. Contudo, esta escolha acarreta um problema imediato: a música é algo natural, pois está presente em praticamente todas as sociedades conhecidas; ou artificial, ou seja, é uma ação do homem em relação ao meio (o som, a acústica, o corpo, a relação entre o movimento do eu e o objeto a vibrar), que, apesar de presente, diferencia-se em cada formação social?

Aposto na segunda resposta, pois qual a semelhança entre o canto xavante, os atabaques bantos, um canto cerimonial indiano e uma sinfonia de Beethoven? São música, não há dúvidas, mas um ocidental em meio à floresta mobilizaria os mesmos sentimentos que um xavante ao ouvir a canção entoada em uma cerimônia religiosa? Um banto da Nigéria teria um deleite estético da mesma forma que um berlinense ao ouvir a nona sinfonia? A música, apesar de guardar algumas características que a permitem ser classificda como tal, possui um componente social muito marcante, diferenciador do modo como uma sociedade possibilita ao compositor sublimar sentimentos e fantasias em algo passível de ser apreciado e sentido por seu grupo, ademais, adquire ao longo da história uma lógica própria, uma maneira específica de relação com a razão, quase como uma gramática de uma língua (imaginem, leitores, uma escala feita em um piano, se o pianista deslizar e tocar apenas uma tecla errada ou a mais, vocês não sentiriam um quê de desarmonia nos ouvidos? ).

Julguei dois compositores emblemáticos para abordar este tema: Bach e Mozart. O primeiro motivo é óbvio, são geniais, ou, mais especificamente (dentro das intenções do texto), são considerados geniais atualmente, dotados de uma aptidão rara para a composição e a execução musicais. Bach demorou décadas para ser reconhecido enquanto tal, apesar de praticamente fundar na polifonia a relação entre harmonia e contraponto e levar ao extremo as fugas, foi criticado muito tempo por possuir traços ditos arcaizantes, oriundos da música medieval. Porém, foi resgatado por alguns compositores românticos e alçado à categoria de gênio no século XX. Deixarei os detalhes deste debate para a terceira parte deste texto.

O segundo motivo para a escolha destes músicos foi o momento histórico em que viveram, no qual a música ainda não era uma arte de artista, mas uma arte de artesão. Os detalhes destas categorias sociológicas serão discutidos na parte sobre Mozart, mas apenas para informar rapidamente ao caro leitor minhas intenções, farei um breve resumo comparando estes dois a um compositor de outra época, Beethoven.

Bach e Mozart produziram em um período no qual o gosto era exterior ao artista, isto é, o que era belo era ditado pela nobreza cortesã (e em última instância pelo príncipe). O músico era de vital importância, pois provia o entretenimento para os nobres avessos ao trabalho manual, mas possuía o mesmo status social de um cozinheiro. Como não trabalhavam na produção, os membros da corte atribuíam-se o trabalho de ouvir e avaliar as composições, por menos que soubessem de música, obrigando os artistas, para serem consagrados, a respeitar determinadas regras na hora na composição. Mas, mais profundamente, este quadro refletia a situação social do músico: era um não-nobre, por melhor que fosse, seria sempre um serviçal, deveria produzir sonatas, cantatas, concertos, sinfonias e óperas como o cozinheiro preparava os banquetes, correndo sempre o risco de o nobre enjoar do tempero. Bach viveu assim em uma das épocas mais duras – em relação ao gosto estrito - do mecenato, sua estratégia, consciente ou não, foi buscar na transcendência religiosa dos temas uma forma de superação das amarras impostas a sua música.

Já Mozart, como menino prodígio, possuía certo reconhecimento em diversas cortes européias, mas isto não foi o suficiente para ele se firmar como artista autônomo. Diversas de suas transgressões à música de corte foram aceitas, mas isto não significou um rompimento com esta forma. Porém, sua atitude avant-la-lettre o colocou à margem das instâncias de consagração de Viena, provocando a depressão que antecedeu sua morte.

Aqui, o contraponto é Beethoven, que começou a compor à época da maturidade de Mozart, mas viveu seu auge em uma fase de ascensão econômica da burguesia, acompanhada de certo ganho de prestígio social, enquanto na França, concomitantemente, esta classe alcançava o poder político. Isto representou um aumento gigantesco de um mercado de música – óperas passaram a vender ingressos ao público em geral, o comércio de partituras e instrumentos se expandiu -, significando uma mudança na relação entre o produtor e o consumidor de arte. O músico passou a interagir com um mercado mais amplo - o público burguês era maior em número e mais diversificado- e não apenas com um tipo de empregador que determinava as regras. Tornou-se possível compor mais livremente e ao artista estimular e influenciar o gosto do público. Beethoven conseguiu realizar sem grandes conflitos o projeto de autonomia que Mozart tentou sem sucesso. Pôde, assim, subjetivar sua produção, de maneira mais livre tanto na forma quanto no conteúdo e no método de trabalho, com a possibilidade de escolher o consumidor final e com acesso a um maior número de libretos, apesar de ter composto poucas óperas. A arte passou a depender mais do modo como o artista encarava suas fantasias, como questionava a si mesmo e ao mundo e como subjetivamente produzia e sublimava na forma de obra de arte do que do gosto de classe, ou seja, dependia de como sua consciência sublimada encontrava eco ou fazia ecoar as estruturas simbólicas de sua sociedade; a autoconsciência passou ser mais determinante do que os dogmas da tradição. É interessante o fato deste processo ter ocorrido anteriormente com a literatura na Alemanha, que, muito antes da música, constituiu seu mercado de bens culturais.

Portanto, Bach e Mozart podem melhor ajudar a compreender como os fatores históricos e sociais estão relacionados com a produção musical pois viveram uma época em que os sentimentos deveriam ser canalizados por um critério puramente de classe, no qual não havia sentido pensar a arte pela arte. Mozart pode ter sido um indivíduo com alguma qualidade especial inata, mas a forma como ele utilizou esta qualidade na música foi determinada também pelo seu contexto histórico-social.

Deste último aspecto, derivarei o terceiro motivo de minha escolha: o caráter quase mítico adquirido por Mozart. Nas histórias e frases que ouvimos, como “Mozart é a própria música” ou “Mozart estava conversando com amigos e ficou calado por alguns instantes, pediu licença e voltou quinze minutos depois: acabara de compor um quarteto de cordas”, (inclusive, muitos fatos excepcionais, como este último, estão registrados em correspondências de amigos e da família do compositor), este caráter de um homem acima dos homens pelo seu gênio singular é marcadamente expresso, possibilitando uma análise mais clara – pela força do objeto – e desmistificadora, mas não no sentido de diminuir o autor e a obra, mas de valorizá-los como trabalho humano, e não como fonte dos deuses ou orixás, santos, ou qualquer instância sobrenatural.

Antes de se afirmar se o gênio de Salzburg nasceu diferente dos demais seres humanos ou se ele se construiu de forma distinta, é preciso deixar claro que muitos se aventuraram, mas poucos conseguiram alguma resposta. As análises basearam-se em fatos documentados e em séries de correspondências, mas, segundo críticos, ou chegaram a becos sem saída pela insuficiência das fontes existentes ou pecaram pela mesma mistificação aqui criticada: tentaram explicar o homem, mas “esqueceram” de compreender o mundo vivido.

Então, o que é o talento? A psicologia pode não ter desvendado a natureza de muitas questões relativas à sensibilidade, à capacidade de transformar as sensações internas na materialidade da obra artística – a objetivação das estruturas sentimentais – ou das indagações relativas ao caráter congênito ou adquirido dessas potencialidades. No entanto, é possível refletir rapidamente sobre o exemplo acima tratado através de perguntas simples: seria Mozart um grande compositor se não tivesse nascido numa família de músicos, escutado desde o berço o pai – professor tido como brilhante e perfeccionista – dar aulas de piano à irmã e aos três anos tocar pela primeira vez as teclas para rivalizar com a menina e receber as mesmas gratificações afetivas de seu progenitor? Se não tivesse excursionado pela Europa ainda menino, recebendo mais carinho do pai e paparicos dos membros das cortes anfitriãs quanto melhor tocava e nestas viagens ter tido contato e aprendido com músicos como Haydn? Se ele não se formasse intelectual e emocionalmente em um círculo social no qual a música era a única e pequena possibilidade de ascensão e prestígio social? Ou, se a sua relação com o mundo não tivesse sido tão fortemente mediada por um pai disciplinador, que estruturava o afeto entre pai e filho pela música?

São dimensões extremamente complexas de serem trabalhadas e não me proponho a qualquer solução, contudo pretendo utilizá-las para conduzir o questionamento central deste texto. Quero apenas instigar o caro leitor a imaginar até que ponto nosso próprio juízo sobre estes gênios criadores não está influenciado pelo individualismo de nossos dias e se, desta maneira, nós não ocultamos a História e criamos mitos para justificar ideologicamente nossa própria alienação, o apartamento de nós mesmos por forças incontroláveis; a pensar se esta forma de encarar as relações sociais e os homens não é fruto de um pensamento tipicamente reacionário, cuja reprodução está presente nos discursos mais cotidianos (mas que passam despercebidos), e, finalmente, a dar elementos para um debate neste blog acerca própria produção contemporânea.

Caros leitores: para quem chegou até aqui, farei algumas observações:

1 – O texto ficou muito grande para um blog, então eu o desmembrei em três:

1.1 INTRODUÇÃO: A primeira parte, postada acima, teve o intuito de situar o leitor na discussão que desenrolarei ao logo das partes, os problemas a serem debatidos e propor alguns questionamentos relativos ao individualismo de análise..

1.2 O HOMEM-ARTISTA MOZART: Nesta segunda parte, pretendo discutir alguns pontos da biografia e da obra de Mozart a partir de uma perspectiva sociológica (com algumas sugestões de análise psicológica). Por exemplo, como era sua relação com seus empregadores e com seu pai. Qual a diferença entre se produzir arte de artesão e arte de artista. Como o artista lidava com as instâncias de consagração e de prestígio social de sua época. Se sua postura combativa tinha um viés político ou se era motivada por ambições pessoais e o que implicou seu rompimento com o arcebispo de Salzburg e sua ida a Viena. E porque fracassou seu projeto de autonomia.

1.3 O OUVINTE DE BACH NO PÓS-GUERRA e a CONCLUSÃO: Nesta parte, quero apontar aspectos do público ouvinte das obras de Bach após a segunda guerra e tentar produzir algumas pequenas generalizações no sentido de evidenciar como o contexto histórico do público interfere na execução e na interpretação de uma obra, como determinados juízos históricos acerca da reprodução de uma música podem produzir o contrário da pretensão do artista. E na conclusão pautar-me-ei pelo aspecto político do discurso individualista presente no discurso do gênio.

Observações para todas as partes do texto, mesmo as não postadas:

1 – Sr. Crespo, desculpe-me, mas não consigo não ser ranzinza.

2 – Não colocarei a bibliografia com o risco de, além de ranzinza, ser chato.

3 – A melhor forma de ler este texto é não ler este texto, mas comprar um bom vinho e ouvir a Sinfonia Júpiter de Mozart ou as 6 Suites de Violoncelo Sem Acompanhamento de Bach.

4 – Como um jornalista não-jornalista e pretenso sociólogo, mas ainda um não-sociólogo, declaro: este texto possui grandes generalizações, porém o Ministério da Informação adverte: foram causadas pelo formato blog.

5 – Antes que alguém pergunte: não, as categorias burguesia e corte não possuem qualquer significado valorativo, moral ou religioso, mas objetivo. E sim, são vistas a partir do ponto de vista do materialismo histórico.

6 – Vamos tomar uma cerveja e ver o tempo passar? Afinal, quem escreve poesia não é poeta, só é poeta quem vive como poeta. Beberemos cerveja, pensaremos que somos poetas, mesmo não o sendo. Viva a ilusão etílica. Viva Baudelaire. Qui dit vous?

Observações sobre o blog:

Parafraseando (ou melhor, copiando) o Regulamento Rex (publicado em Rex Time 3, de 25 de maio de 1966), proponho algumas regras para este blog:

1 – Laisser-passer (não fure a bola)

2 – Laisser-faire (deixa a gente jogar)

3 – Acreditar piamente na imortalidade da Alma (por uma questão de conforto)

4 – Manter o Bom-Humor a todo pano. (... o Bom-Humor nosso, não o dos outros)

5 – A Pena e a Espada dominam o Mundo, a Vaselina supera as duas. (Atualmente já existe o KY)

6 – Eu sou um cavalo velho, que venho de todas as guerras e batalhas, e não estou ligando para mais nada.

7 – Nós vemos tudo, ouvimos tudo, falamos tudo e eles não vêem nada, não ouvem nada, e não dizem nada (a não ser o que todo mundo sabe).

8 – A vida é feita de detalhes (ou nuances, como queira).

9 – Uma coisa puxa a outra. (Acrescento: tirar a calça tem sempre uma conseqüência)

10 – Toda a Guerra é uma festa. Toda festa é uma guerra.

11 – Quando todos estão brincando, nós estamos trabalhando, e quando todos estão trabalhando, nós estamos dormindo!

12 – Nada se cria, nada se perde, e dá tudo sempre na mesma, e vamos acabar com esta conversa, seu convencido!

segunda-feira, 14 de maio de 2007

TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

A imprensa não é mais a mesma (não diga “ah, vá!”, ainda). Durante o século XX as mudanças nos jornais já foram enormes, com a diminuição dos textos, o apego a fatos pontuais e descontextualizados e o aumento da utilização de fotografias. A popularização da televisão parecia ameaçar a mídia impressa. Na última década, porém, essas mudanças foram astronômicas, com o advento da internet e tudo o que ela engloba. As teorias da conspiração surgiram junto com a avassaladora velocidade dessas mudanças e o tanto que elas afetam nossa vida cotidiana. Quanto tempo por dia você passa lendo e respondendo e-mails? E procurando vídeos no YouTube? Fuçando na vida alheia pelo Orkut? Conversando pelo MSN? Fazendo trabalhos com a ferramenta de busca do Google? Já trocou as lojas físicas pelas online? Hmmm...

Há três anos, o jornalista Matt Thompson produziu um vídeo de oito minutos que virou fenômeno de audiência, de paranóia, e de discussão. Basicamente ele conta como o Google englobou o mundo e se fez necessário, único, dando conta da vida de todos em todos os aspectos: perfil social, amigos, família, relações, opiniões, desejos, compras, trabalho, informação, etc. Controlando todos esses aspectos, já em 2014 a empresa Google teria como puxar um perfil detalhado de cada um, para o bem ou para o mal. Dê uma olhada no vídeo (http://epic.makingithappen.co.uk/) ou leia abaixo um resumo da estória (ou história? – algumas previsões já se realizaram). Se não quiser os detalhes, pule as estrelinhas e siga pela estrada de tijolos amarelos.

***

EPIC, 2014

Em 1989, Tim Berners-Lee concebe a World Wide Web. Em 1994, a Amazon inicia suas atividades como uma loja que vende absolutamente qualquer coisa e consegue até fazer sugestões automáticas personalizadas para seus usuários. Em 1998, o Google é criado por dois estudantes da Universidade de Stanford, com a promessa do mais rápido e efetivo sistema de busca do mundo. Em 1999, a TiVo muda a concepção de TV, libertando-a dos grilhões do tempo e da publicidade – você escolhe o que quer assistir e a que horas quer assistir, sem intervalos. No mesmo ano, o Blogger, uma ferramenta para qualquer um escrever o que quiser sobre o que quiser, é fundado. O Google vai se desenvolvendo rapidamente e cria, entre outras coisas, o Google News, um serviço único que não necessita da intervenção humana: é completamente editado por computadores. Em 2002, o site Friendster é lançado, algo como uma primeira versão do Orkut, em que as pessoas preenchem detalhadamente seus perfis pessoais, colocam fotos, juntam seus amigos e interagem.

Em 2003, o Google compra o Blogger. Em 2004, cria o Gmail, colocando no chinelo o rival Hotmail, da Microsoft. O Google começa a digitalizar os acervos de bibliotecas, e compra o Keyhole, que vira Google Earth, uma companhia que mapeia o mundo através de satélite. A revista Reason manda para cada assinante um exemplar com uma foto de satélite da sua casa na capa e informações personalizadas no miolo.

(Lembre-se, de agora em diante, são suposições do autor; ele fez o filme em 2004).

Em 2005, a Microsoft compra o Friendster em resposta ao Google. A Apple cria o WifiPod, que permite aos usuários mandar e receber mensagens instantâneas (bem, o celular já faz isso).

O Google, com tudo o que já possui, cria o Google Grid, uma plataforma universal que oferece espaço ilimitado para o usuário guardar qualquer tipo de arquivo e escolher o quê quer manter privado e o quê deseja tornar público. Em 2007 a Microsoft cria o Newsbotster, uma rede de informação social que seleciona notícias para cada usuário baseada no que seus amigos e colegas lêem, e permite que qualquer um comente sobre o que vê.

Em 2008, o Google e a Amazon se fundem, formando o Googlezon - a primeira oferece seu Grid e a segunda oferece as informações personalizadas. Googlezon é um sistema de procura automática em todas as fontes de conteúdo; ele proporciona, baseado nas informações pessoais adquiridas, as informações que julga interessar ao usuário. É uma máquina que pensa e decide por nós.

Em 2010, a guerra da informação explode entre a Microsoft e o Googlezon. O mais curioso é que essa guerra não envolve organizações reais de produção de notícias. No ano seguinte, o Quarto Poder emerge para fazer sua primeira e última intervenção: O “New York Times” processa o Googlezon sob a alegação de que “os ‘robôs de despir fatos’ violam a lei de propriedade intelectual”. O jornal perde.

Em 2014, a Googlezon cria a EPIC (“Evolving Personalized Information Construct”), algo como “Construção da Informação Personalizada em Desenvolvimento”, que paga aos usuários (ou seja, todo o mundo) para contribuírem com qualquer informação no grid central, permitindo que o sistema selecione e dissemine notícias customizadas, sem a interferência de jornalistas – ela aleatoriamente retira partes de textos e troca com outras partes de outros textos, mudando as histórias de acordo com o gosto de seus usuários, formando um produto totalmente individualizado. Os arquivos da EPIC não categorizam apenas notícias, mas informações demográficas, visões políticas e hábitos de consumo de cada um. No seu melhor, a EPIC é um sumário do mundo, maior, mais abrangente e específico do que qualquer outra ferramenta existente. Por outro lado, a EPIC é meramente uma coleção de trivialidades, muitas falsas, e todas limitadas, rasas e sensacionalistas. As empresas de mídia tradicionais vão à falência uma a uma, e a última que sobra, o “New York Times”, sai da Web para virar uma newsletter impressa para a elite.

“Mas era isso o que queríamos, não?”, questiona o autor.

***

A ESTRADA DE TIJOLOS AMARELOS

O vídeo da EPIC, embora um pouco exagerado, mostra uma seqüência de acontecimentos que já está em curso. Não acredito que a História será reescrita, assim orwellianamente, virtualmente, mas estamos cada vez mais dependentes do mundo virtual, em detrimento do real. Estamos em plena era da informação, recebendo partes de notícias pelo celular, pelo rádio, pela televisão, pela internet. Os jornais criam novos projetos gráficos, para otimizar a leitura; lemos muitas vezes apenas as manchetes nos portais da internet; vemos um pedaço do noticiário na TV antes de mudar de canal. A pressa dos leitores muda a maneira como os escritores escrevem. São sempre lampejos de um fato, nunca – e cada vez menos – o contexto, causas, conseqüências. Estamos perdendo a dimensão do todo.

Uma verdade descontextualizada é quase tão nociva quanto uma mentira.

Não bastasse essa escassez de completude, qualquer pessoa pode publicar o que bem entender na Web, sem maiores conseqüências (a Lei ainda não descobriu um meio efetivo de julgar internautas). Isso é bom por um lado, porque não deixa a voz das opiniões permanecer com os acadêmicos, técnicos e renomados. Por outro lado, empesteia os WWWs de bobagens, equívocos e mentiras maquiadas de verdades. Quem decide o que é o quê?

Blogs pessoais, Fotologs, Perfis de Orkut, gente se desnudando (não só fisicamente) na Web. E agora, a última são os “twitters” (palavra originada de “twit”, o som dos passarinhos), pessoas que postam na internet tudo o que fazem o tempo todo, geralmente através de celulares. Coisas do tipo “saí de casa”, ou “cheguei ao shopping”, ou “estou parado no trânsito”. Textos minúsculos, que não podem ultrapassar 140 caracteres, sem interesse algum para qualquer um que não seja quem está postando ou quem está vigiando quem está postando.

As teorias da conspiração podem até ser exageradas (ou não; você já reparou que as propagandas do lado direito do seu Gmail sempre utilizam como base alguma palavra usada nos seus últimos e-mails?), mas apontam para o caminho aparentemente sem volta da desinformação em plena era da informação. E agora, quem poderá nos defender?

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Loucurações (sobre qualquer coisa)

Sofro de uma doença estranha. Embora a palavra doença soe carregada, ainda mais para a primeira linha de um texto, esta minha doença, creio eu, seja digna de risos, não compaixão. É curiosa, anormal, singular, e... estranha. É algo relacionado a outras doenças. Fui uma vez ao médico tratar um problema de estômago. Após três meses de tratamento voltei para dizer que de nada adiantou. A dor persistia. O médico disse que eu estava louco. Quis dizer que a minha doença, a relacionada ao estômago (!), deveria me levar ao psicólogo. Nunca mais voltei ao médico.

Tenho uma espécie de antropofagia cultural às avessas. Invés de incorporar o que há de bom nos outros, hospedo seus pequenos defeitos. Uma vez descobri que um amigo não conseguia engolir comprimidos. Em algumas situações ficava internado com tubos e tubos de soro para se recuperar de problemas que a ingestão de alguns comprimidos resolveriam. Eu nunca tive problemas com isto e debochei do coitado. Hoje sei que ele superou este trauma, e engole, se preciso, 5 (CINCO) enormes (ENORMES!) drágeas de uma só vez!!! Eu, em compensação, desde então preciso mastigar para conseguir engolir diariamente um minúsculo remédio para dor no estômago.

Após este fato andei pesquisando sobre pessoas neuróticas e estava quase me diagnosticando, até descobrir que para Freud todos são neuróticos, ou então, perversos. Ok, sou neurótico e não falemos mais disto.

Mas vejo que ainda não expliquei exatamente sobre o que consiste esta minha doença estranha. É uma espécie de doença de Zeno, de quem agora vou falar para que entendam o problema.

O livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo (1861-1928), conta uma história não linear. Já com certa idade, o personagem Zeno resolve ir ao analista para rever sua vida. A narrativa dá passagem a primeira pessoa nos relatórios escritos por Zeno, quando o médico o aconselha a lembrar e escrever episódios marcantes de sua vida. Assim, ficamos sabendo sobre seus fracassos amorosos, o trabalho que não lhe trazia satisfação, e suas tentativas frustradas para mudar de vida. Seria dramático, não fosse hilário. Pois ora, a memória é incerta, e nem sempre sabemos se aquilo realmente aconteceu. Zeno tem uma visão afastada sobre cada episódio vivido. Ele mesmo não sabe como julgar cada situação do passado, e muitas descrições tornam-se patéticas.

Contudo, o humor fica por conta das manias do personagem, que se apresenta como um típico sujeito neurótico, cheio de cismas que se transformam em doenças das mais bizonhas – como eu. Ao se reencontrar com um antigo amigo, começam a conversar sobre um problema que este tem na perna. Conversam algum tempo sobre o tratamento do outro. No final da conversa, Zeno volta para casa mancando.

Claro que agora, quem chegou até este ponto do texto, pode estar ansioso para entender duas coisas. Primeiro: aonde eu quero chegar com isso? Segundo: saber se eu adquiri essa doença ao conhecer sua existência lendo o livro. A primeira será respondida naturalmente, no decorrer do texto (ou não). Já com relação à segunda, se você realmente fez essa pergunta, então meu amigo, você está a um pequeno passo para adquirir esta doença também. Pois para este complexo capcioso, basta pensar em não possuir determinado problema e...pronto! Acontece. É um inconveniente terrível, que pode acontecer com qualquer um. Estimativas indicam que até o ano 2035, mais de 35% da população mundial sofrerá deste mal.

Ah, esqueci de mencionar que também tive contato com pessoas mitomaníacas. Acontece...

terça-feira, 8 de maio de 2007

UZOUTROS

De muito pequeno que, vira-mexe, sou reprimido com o pavor dos mais sábios: “O que é que os outros vão pensar?”. O dilema, claro, nem sempre é tão explícito, primeiro porque já não tenho idade para engolir esse infantilismo cínico e segundo porque quem o faz admite, ainda que para si mesmo, a fraqueza de seu próprio medo.

Natural, pois, que eu tenha crescido odiando “os outros”. Mesmo que eu nem soubesse quem eles eram, de fato. Uzoutros, para minha imaginação meio medrosa e meio desafiante, era instância máxima coercitiva, fantasma de pequenos sapecas e contraventores dos deveres de um bom menino. Até meus doze anos, Uzoutros me “fazia” sentir culpa de mim mesmo. Oh, papai do céu, eu era um malcriado e haveria de ser banido do mundo pel’Uzoutros. Rezava para que Chapolim acabasse com ele antes que ele acabasse comigo.

Não aconteceu nenhum dos dois. Mas hoje, mais lúcido e menos medroso, eu sei que não era nada daquilo, sei perfeitamente quem são eles. Os outros estão à nossa porta, à nossa espera para preencher suas vidinhas repletas de valores estúpidos e insignificantes; são o retrato da hipocrisia e da petulância vigentes em toda a pompa do nosso círculo social.

Os outros são os fúteis, os mesquinhos, os andarilhos da classe média guiada por rédeas. Os outros são aqueles que escreveram a Bíblia, aqueles que a lêem e que depois vomitam o falso moralismo cristão para cima de nós, pobres invólucros de pagãos sofredores. Sob o olhar e a vigia sanguinária dos outros, somos penitentes sem causa.

Os outros são os racistas (in) conscientes, os homofóbicos orgulhosos que desfilam sua ignorância e que, nossa!, são machões que não choram e não usam brincos nem piercings. São donzelas que trepam em silêncio (ou não trepam), mas urram e cospem para o alto com o grande orgasmo do fetichismo à vida alheia.

*O corretor ortográfico do Word sublinha a palavra “trepam”, pede para que eu corrija a expressão escrevendo “têm relações sexuais”. Educadíssimo, este programa. Os outros são o Word.

Os outros são aqueles chocados com o realismo perverso de Nelson Rodrigues e com o vandalismo sem perigos do rock; são aqueles que se incomodam porque estão abaixo do nosso presidente analfabeto e proclamam com toda seriedade e raiva “ele é tão burro que perdeu um dedo”. Os outros são os elitistas de terceiro mundo, arianos de sangue azul enojados com a falta de modos dos pobres; são os donos das televisões e os editorialistas destes jornais e revistas ditos grandes.

Os outros são os vizinhos do andar de cima, de baixo, de muro, de janela nos condomínios fechados e espremidos. Arquétipos da conduta reacionária e “sociável”, “civilizada”. Aqueles que não falam palavrões ou, se falam, “só dos mais leves, de veeeez em quando”. Os outros não falam “buceta”. No entanto, têm a cabeça encaralhada e fodida o tempo todo. O tempo todo.

Os outros são, sim, clichês. Ambulantes e desqualificadores de coisas e gentes. Os outros são aqueles que riem do que eu escrevo, da minha baixaria gratuita. Eles me acham mal educado...

Os outros são os donos da verdade; são eles que julgam o certo e o errado. Mas calma lá: os outros não julgam suas próprias atitudes, mas apenas as... dos outros. É uma loucura. Pior que isso: os outros se guiam pelos outros. Justamente por essa paranóia toda é que nunca, ou muito raramente, existem os “nós mesmos”.

Os outros estão do lado de dentro da nossa porta, mas ainda assim insistimos em tratá-los como estranhos, donos de uma mão invisível smithiana. Como uma terceira do plural indefinível. Os outros são assim. O mais perfeito retrato de – quase - todo mundo.