domingo, 3 de junho de 2007

Memórias de McCartney

Certa vez perguntaram ao Paul (Sir Paul, desculpe) se um dia ele pretendia parar de compor. Ele não gostou da pergunta. Agora, mesmo aos 64, parece ter o entusiasmo que tinha quando, ao fim dos Beatles, se trancou num estúdio para compor e gravar todos os instrumentos de um novo projeto solo. Mas apenas parece. De lá pra cá há um enorme abismo.

Em 1970, entre uma dose e outra de uísque, ele brincava com a aparelhagem de seu home studio. Aproveitava o sossego de sua fazenda na Escócia para experimentos. Incorporava a espontaneidade. Criava solos de bateria e gravava sua respiração ofegante conforme aumentava a pressão sobre os tambores. Não tinha preocupações com Heather Mills, na época uma inofensiva recém-nascida. Havia Linda...O patrimônio criado pelos Beatles permitia que Lennon e McCartney - o Harrison também - seguissem em frente, sozinhos. A cobrança ficava entre eles: qual Beatle é mais criativo (leia-se: vende mais – embora não seja a mesma coisa) em carreira solo?

Porém, conforme alertava Bob Dylan, os tempos estão mudando! O Sargento Pimenta fez 40 anos (ontem), e nesta semana é lançado Memory Almost Full, o 21º álbum solo de McCartney. E lá vamos nós - todos nós de corações solitários - ver o que o ex-Beatle (não gosto do prefixo. Não é como ser um Menudo. Uma vez Beatle, sempre Beatle!) anda fazendo. E qual é a reação ao ouvir Dance Tonight, a primeira faixa? Bastam quinze segundos para um pensamento: “Esse é o mesmo cara que participou da quarentona obra-prima do rock?”.

Se os tempos mudaram, e principalmente as circunstâncias para compor, outras coisas continuam como antes. Em entrevista recente, Paul diz usar os mesmos pequenos truques para composição de quando assinava com John Lennon. E, de fato, algumas lembram Beatles, outras Wings, e também um pouco de seus últimos trabalhos. Veja lá nas velharias dos Wings se já não foi gerado material parecido com Dance Tonight. É como a roupagem de Mull of Kintyre (1973) substituindo violão por bandolim, e gaita-de-fole por...assovios. Logo, não deveria surpreender, mas, pode decepcionar quem procurava algo revolucionário (teria como?).

A diferença é que em 1973 era possível lançar Mull of Kintyre num compacto para promover um álbum. Mas, quem comprava o novo disco não ouviria Mull of Kintyre! Estava apenas no compacto - por sinal, o mais vendido da história. Hoje a estratégia é diferente. Paul, além de todo talento musical, também é conhecido como bom marketeiro (sem conotações pejorativas, por favor). Sabe criar singles e fazer vender. Ou, pelo menos, sabia...

Dada a extinção dos compactos, Dance Tonight foi “promovida” com grande modernidade: o YouTube. A palavra acima não à toa está entre aspas. Muitos fãs vão considerar a música um atentado contra a imagem do Memory Almost Full. Um amigo, fanático por Beatles, disse que a ouviu e se desinteressou para conhecer o resto. Digo, “o resto”.

As comparações com seu último álbum, Chaos and Creation in the Backyards (2005), sobre qual é melhor, foram imediatas. Embora inevitável, a comparação não é justa. Ouvia-se dizer antes do lançamento de Chaos: “um dos melhores trabalhos de McCartney”; “uma prima de Blackbird entre as músicas” (yeeeah, o marketing deu certo!). Antes do lançamento foi criada uma boa expectativa, sem nenhuma faixa ter vazado na Internet! A estratégia funcionou, não em termos de vendas (afinal, os tempos mudaram), mas, foi bem aceito – e o álbum é realmente bom.

Memory Almost Full chega discreto, sem alardes. Não se esperava o lançamento de dois álbuns em um período tão curto (sem contar o Ecce Cor Meum, trabalho clássico lançado há poucos meses). Logo, a publicidade ficou por conta de Dance Tonight justamente no ano em que voltamos a falar de Sgt. Pepper. Ao contrário de Chaos, quem apenas ouviu o single chega com maus pressentimentos para conhecer “o resto”. Vista as circunstâncias desfavoráveis deste lançamento, resta o exercício de ouvir – o álbum, para o infortúnio de Paul, caiu na Internet semanas antes de ser lançado.

Não é preciso muito para perceber que a sonoridade (timbres, freqüência do microfone, a repetitiva ressonância da vogal ‘u’, etc) se assemelha com o Driving Rain, de 2001. Então, descobre-se que o produtor foi o mesmo, David Kahne. Na época de Chaos, muito se falou sobre Nigel Godrich, que já produziu o Radiohead, auxiliando e sabendo interpretar como as canções deveriam soar. Se existe alguém que mais teme comparações, este é David Kahne, que dispara numa entrevista ao jornalista brasileiro Claudio Dirani: “Este (o atual) é meu álbum favorito do Paul”. Percebem? É o mesmo marketing, talvez tardio. Se Nigel Godrich teve o prestígio de ser indicado por George Martin, dos Beatles, para o álbum de 2005, David Kahne não teve o mesmo mérito. E, antes de ser criticado, ele espertamente se defende: “Por favor, não use referências de outras músicas! Paul é diferente. Ele não resgata nada em seu passado. Compõe, toca e grava sempre pensando em criar algo novo”.

Embora minta, a defesa é compreensível. E eu, assim como ele, também evito comparações (mesmo porque Mull of Kintyre é melhor do que Dance Tonight (!!!!) ).

Agora, se sua admiração pelo Sir. não foi afetada, e você não pensa que ele seja apenas o Beatle romantiquinho, acomode-se numa poltrona tão convidativa quanto a estampada na capa do CD para uma audição. Ouça os riffs de Only Mama Knows, a tensão de House of Wax, os elementos clássicos e pseudo-eletrônico de Mister Bellamy, e a melancolia de You Tell Me. Quem sabe você não seja levado a pensar que os tempos não mudaram tanto assim.

5 comentários:

Thiago Crespo disse...

Hey, você pegou pesado com Dance Tonight! É divertida, pelo menos, pô!

E faltou listar End of the End, um primor simples ao piano.

Gostei da análise e da percepção. A comparação com Chaos... é inevitável, mesmo, principalmente para alguém que não tenha acompanhado os outros dezenove solo's (eu). E sabe do que mais? Esse é melhor. OK, sou um entusiasta imediatista, mas soa mais, mais... mais heterogêneo que o outro (vou ouvir de novo, ambos com a mesma atenção e a mesma disposição).

Ah, senhor Lúcio, há aqui muito mais que uma resenha dessas que se vê em todo canto agora, mas ainda assim eu senti falta de uma análise meio faixa-a-faixa, sei lá. O senhor tem charme e propriedade para fazer isso e deixar muito melhor que as encomendadas.

Abraço.

ps. 1234567890 pontinhos pela cadeira para a audição.

Isabela disse...

Senhor Lúcio, não conheço a carreira solo do Sir, só algumas mp3 espalhadas por aí.
Mas, em primeiro lugar, acredito que um fã, ao escrever, tem uma vantagem e uma desvantagem em relação ao crítico comum.
A vantagem é que ele leva em conta a trajetória - e a vida pessoal - do artista e vê as coisas com mais clareza e sensibilidade; a desvantagem é que pode se tornar condescendente. Eu mesma já me peguei gostando de músicas de um ou outro artista que nem eram tão boas assim, mas também não eram ruins, e, mais importante, eram deles!
Bom, depois desse monte de avaliações sem sentido, pode o senhor disponibilizar esse disco novo em mp3 aqui no blog???

Lúcio Ducel de Diamantes disse...

Pensei em fazer isso, Crespinho. Uma análise faixa a faixa, e até já tinha idéia de como fazer. Mas o constante desinteresse de muita gente em ouvir esse cd achando que não é melhor que o Chaos, me irritou. E eu, assim como vc, tb sou um entusiasta imediatista!
End of the end é realmente muito bonita – ainda mais porque ele nunca tinha composto sobre o tema. Teria destaque se fosse uma análise faixa a faixa.
Já Dance Tonight ficaria melhor fora do disco! Num compacto especial para colecionadores, ou só no you tube! E não se engane! No clip se percebe que não é divertida, mas sim, sinistra! O.o

Abraços

ps: cadeira não, poltrona!

Lúcio Ducel de Diamantes disse...

Isa, concordo com o que disse.
Eu costumo me policiar para evitar gostar apenas por ser fã.
Mas, não nasci gostando do sir! Aliás, detestava-o! Quando tinha show dele na tv eu desligava.
Preferia o Lennon...
Mas, aos poucos, fui conhecendo a carreira solo. As partes boas, as partes ruins, as partes ÓTIMAS, e as PÉSSIMAS!
E, aqui, não quero dizer se é bom ou não (vai de cada um - dá margem a uma eterna discussão), mas afirmar: se vc gosta dos álbuns McCartney I, RAM, Flaming Pie, Red Rose e Chaos - entre outros -, não seja preconceituoso e dê atenção para esse lançamento!

É isso aí gente! Vamos fazer disso aqui uma grande polêmica!!! =D =D =D =D
hahahaha

bjos

Eduardo disse...

Acho difícil evitar uma comparação com os Beatles, mas também é preciso se pensar que parcerias como Lennon/McCartney, quando terminam, dificilmente atingem a mesma consistência nas carreiras solo. Digo isso porque não ouço muito a produção da carreira solo do Paul, e sempre quando ouço fico lembrando de suas canções nos beatles. Mas, pensando no Chaos... como um disco em separado do beatle Paul, é um trabalho muito bom, excelente se considerada a produção contemporânea.
Agora espero um roteiro da obra mccartiniana do senhor Lúcio.