quarta-feira, 6 de junho de 2007

Censura: violência e silêncio na música Cálice

A censura oficial do regime militar brasileiro é motivo de diversas discussões entre artistas e músicos brasileiros. Se para alguns, como o maestro Júlio Medaglia, ela incentivou a criatividade, para outros, como Chico Buarque, ela significou um obstáculo, uma pedra no caminho da produção artística e intelectual brasileira.

Chico revelou em várias entrevistas que o controle externo do conteúdo de suas canções interferia na criação, ceifando muitas idéias e possibilidades de uma música. Ademais, os artifícios para se driblar a censura, como o uso de metáforas, deixaram, muitas vezes, tão intrincados os sentidos das letras que atualmente o próprio compositor não recorda o sentido de determinadas passagens. Chico Buarque representou em diversas músicas esta opressão sentida pela censura sistemática que sofria e pela negação política de sua obra, vista pelo compositor como um roubo da própria voz.

Cálice, feita em parceria com Gilberto Gil, é um exemplo de música alegórica a respeito da censura e das dificuldades de se compor sob ela, podendo ser encarada como uma metalinguagem da palavra expropriada, pois trata da expressão contida, no limite levando ao silêncio. Na canção, a palavra cálice é repetida freqüentemente, adotando o sentido e a sonoridade de cale-se, representação da repressão sobre a produção cultural – a manifestação artística calada arbitrariamente pelo Estado.

Na música, o silêncio imposto torna-se, progressivamente, mais violento a cada estrofe, como uma censura que vai se institucionalizando, profissionalizando e tornando-se mais forte. Na primeira estrofe há o verso: “mesmo calada a boca resta o peito”. Na terceira: “mesmo calado o peito resta a cuca”. E, por fim, na última, a própria cabeça é perdida, e sem ela há o silêncio total: “quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder seu juízo”. Nesse trecho, a boca pode ser encarada como simbolizando a capacidade de comunicação; o peito, a capacidade de sentir e a cabeça a capacidade de pensar, ou seja, gradualmente extinguiram-se as próprias faculdades humanas, a impossibilidade de manifestação do pensamento por meio da palavra anula o próprio indivíduo, decapita o artista.

A composição, gravada em 1973, parece dialogar diretamente com o governo Médici, que usou, além da censura, a tortura e a morte para calar os chamados subversivos, ou seja, aqueles que ousavam falar. O verso “silêncio na cidade não se escuta” mostra que existiam muitas vozes querendo se expressar, porém a situação as obrigava a não se pronunciar, a palavra não saía da garganta, pois existia “tanta mentira, tanta força bruta”, ou seja, a ameaça explícita e velada de uso da violência contra os opositores abafou as vozes das cidades.

A violência volta a se relacionar com o silêncio nos versos “como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado”. Acordar calado é difícil, mas necessário, pois se não se cala, corre-se o risco da danação noturna, isto é, durante a noite realizavam-se muitas das prisões políticas, longe dos olhos dos “cidadãos de bem”, podendo culminar em tortura e até em morte, encaradas, nessa análise, como representadas pelo “grito desumano”, o grito daqueles que perderam a humanidade pelas mãos dos torturadores, mas que no sacrifício – assim como nos sofrimentos de Jesus Cristo na cruz, tema sugerido pela repetição das palavras pai, vinho, sangue e cálice – se fazem ouvir.

Na quarta e na quinta estrofes é possível interpretar o sentido dos versos como uma tentativa do autor mostrar que, apesar da “palavra presa na garganta”, há a possibilidade de resistência. “De muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta” é a imagem de um Estado gigantesco, invasor dos âmbitos privados, crescendo ainda mais, gerando sua própria contradição, a faca que de tanto cortar perde sua utilidade. Enquanto o quarteto “esse pileque homérico do mundo / de que adianta ter boa vontade / mesmo calado o peito resta a cuca / dos bêbados do centro da cidade” evidencia um mundo ao avesso – a ditadura que destruiu a democracia em construção dos anos 1950 e 1960 -, um mundo bêbado, fora de si, onde apenas a vontade ou a idéia de mudar não bastam e onde os que pensam, aqueles que ainda têm cuca, estão bêbados com o regime, isto é, as classes médias dos centros das cidades iludidas com o crescimento econômico, classes que emperram a mudança. Todavia elas perderão a cabeça, segundo a vontade do autor, na estrofe seguinte.

Quando se diz “quero perder de vez tua cabeça” refere-se a esse teu, um interlocutor elíptico, podendo ser visto como esta cabeça dos centros das cidades e dos donos do poder, Chico pode estar referindo-se a essas classes médias que têm papel fundamental na manutenção do regime e contribuem significativamente com a formação, consolidação e reprodução de valores favoráveis ou geradores da crença sobre este sistema político. Então perder tua cabeça adquire um valor de negação da ilusão, dos valores e da crença no status-quo, “minha cabeça perder teu juízo”.

Nos dois primeiros versos da última estrofe parece existir uma chama de esperança ou a tentativa de retirar o véu ideológico desse governo que provoca o silêncio para conter a reação. “Talvez o mundo não seja pequeno” procura quebrar certa visão lacônica e imediatista – geradora de conformismo, própria das camadas sociais beneficiadas pelo “milagre econômico” – e mostrar a vastidão do mundo, a existência de inúmeras experiências políticas diferentes, outros modelos de regime, formas diferentes de se organizar um país e múltiplas soluções para os mesmos problemas, que não necessariamente passem pela violência. No verso seguinte, “nem seja a vida um fato consumado”, existe a tentativa de quebrar o conformismo e a apatia e mostrar que as coisas são mutáveis, que a vida dos homens é um processo, é história, não está escrita e não é monolítica, sendo passível, portanto, de uma ação transformadora.

O mundo que se espera com a transformação é aquele que permita “inventar o próprio pecado” e “morrer pelo próprio veneno”, ou seja, permitir ao povo realizar-se, governar-se, tentar e pagar pelo próprio erro, como nos regimes democráticos, e não impor a verdade através de um Estado centralizador.

A raiva e a vontade de fugir desse governo opressor aparecem já na primeira estrofe em “de que me serve ser filho da santa / melhor seria se filho da outra”, pois as rimas são organizadas de forma a induzir o leitor a construir um palavrão. As palavras finais dos versos anteriores são: labuta, peito, escuta, santa, logo em seguida aparece outra, soando estranha ao ouvido.

Uma possibilidade para se entender esta agressividade é a censura sistemática da obra de Chico Buarque, principalmente no governo Médici. Porém, é possível perceber na canção que o foco não está composição musical, mas possui um caráter mais amplo.

É difícil separar, mesmo um pouco distante historicamente, o que foi incentivado pela censura e o que foi impossibilitado, contudo é passível de reflexão o fato de que, principalmente a partir dos anos 1950, o Brasil sofreu um momento de efervescência cultural que durou, pelo menos, até meados dos anos 1970. Então, a censura, por si só, não explica o surgimento de grandes compositores populares sob a ditadura militar, e buscar nesse instrumento de um governo a resposta para manifestações artísticas profícuas do período é no mínimo especular com a História.

O que está em jogo quando se fala em censura é a relação estabelecida entre o público e a coisa pública, ou seja, aquilo que deveria ser de acesso geral, pois diz respeito à própria sociedade, sua organização e sua reprodução, contra interesses particularistas, que estabelecem seus domínios com a apropriação do pertencente à coletividade. Dizendo respeito tanto a conteúdos – artísticos, culturais, jornalísticos, de transparência (só para usar uma palavra da moda) - como a direitos e deveres estabelecidos em conjunto (não em um sentido conservador, de ordem, mas de reconhecimento das desigualdades e da busca de uma saída para elas, ou os velhos vocábulos: universalização, acesso, distribuição, equidade).

E esta ligeira definição talvez ajude a mostrar que a composição de Chico Buarque e (do velho) Gilberto Gil não esteja tão velha assim. Quantos cale-se você não ouviu ultimamente? Do congresso? Da mídia? De empresas? De qualquer pessoa que tivesse algo a comprovar? A institucionalizada não é a forma mais refinada de censura.

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Abaixo, video da música Cálice tocada por Chico e Gil no festival PHONO 73, no Anhembi. A letra da canção havia sido censurada, juntamente com Anna de Amsterdã, de Chico, mas os artistas decidiram subir ao palco e apresentá-la com a letra distorcida. Porém, os policiais exigiram que a mesa cortasse os microfones. No DVD é possível ouvir Chico dizer: "Estão me aporrinhando muito. Esse negócio de desligar o som não estava no programa. Claro, estava no programa que eu não posso cantar a música nem "Anna de Amsterdam". Não vou cantar nenhuma das duas. Mas desligar o som não precisava não".





4 comentários:

◈lunaluna◈ disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Isabela disse...

Ué, pq removeu-lho comentário? Era propaganda? Vírus? Achei que fosse alguém tentando fazer amigos...
Vamos ao que interessa: fenomenal o texto, Du (é o seu trabalho da Claquete, né, cara de pau?). Mas, de novo, enorme para o formato blog. Talvez você pudesse dividí-lo com subtítulos; ficaria mais dinâmico.

Thiago Crespo disse...

Pra não passar em branco: o texto é muito bom, mesmo. Muito pertinente.

Mas, embora tenha ótima fluência, eu concordo com a idéia da necessidade de um certo dinamismo aí. Prova disso é que, pra ser sincero, não li num tempo só (por causa do trabalho, é verdade, mas eu me sentiria menos culpado em ter de voltar depois para a leitura se houvesse tópicos ou outras divisões de algum jeito, sei lá).

ps. Há uma música boa para ser analisada nesses moldes também: Deus Lhe Pague . E, diga-se aqui, os Paralamas fizeram uma leitura sensacional da canção.

Anônimo disse...

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