quinta-feira, 17 de maio de 2007

DOIS GÊNIOS - INTRODUÇÃO

O que é ser genial? Ou, antes, quais são os fatores constitutivos da genialidade? Nos discursos individualistas e liberais a categoria gênio aparece como algo em si, ou seja, o gênio guardaria em suas características internas a explicação para sua própria existência. Desta maneira, este indivíduo aparece como alguém em separado do universo social e da história, distanciado das condições que o permitiram diferenciar-se e destacar-se da maioria, como o se o terreno do trabalho e do estudo aplicados para o desenvolvimento da intelectualidade, habilidades técnicas, destrezas, acúmulo de conhecimentos, sublimação de sentimentos, etc., fosse soterrado por uma série de variáveis metafísicas, como dom, talento, inspiração, isto é, qualidades inatas surgidas quase como um sopro divino.

Não quero afirmar que o aspecto do suor desapareça, mas ele é reduzido à quase inexistência quando a explicação dirige-se ao campo dos ímpetos e lampejos criativos surgidos diretamente da própria individualidade, como se houvesse uma separação entre homem (mundo) e o gênio (indivíduo único), e não uma relação. Este é o erro de muitos biógrafos, que centralizam suas obras a partir da perspectiva estrita, tanto psicológica quanto narrativa, do seu objeto de análise, acabando por desconsiderar o contexto, a formação e as condições históricas que permitiram a uma determinada pessoa realizar um certo trabalho.

A tese deste texto é: não é o indivíduo que determina a si mesmo, ou seja, não é o gênio que se constitui enquanto tal, mas uma série de fatores, tanto sociais e históricos quanto psicológicos, constituídos enquanto tensões, relações, conflitos e contradições que formam os sujeitos e determinam o escopo e a profundidade de suas ações, de sua intervenção no mundo. Da mesma maneira, essas características são parte da forma como os tidos gênios são encarados em cada momento histórico.

Para discutir este assunto, abordarei uma área que talvez seja a mais suscetível ao reconhecimento de gênios: a arte, neste caso, a música ocidental. Contudo, esta escolha acarreta um problema imediato: a música é algo natural, pois está presente em praticamente todas as sociedades conhecidas; ou artificial, ou seja, é uma ação do homem em relação ao meio (o som, a acústica, o corpo, a relação entre o movimento do eu e o objeto a vibrar), que, apesar de presente, diferencia-se em cada formação social?

Aposto na segunda resposta, pois qual a semelhança entre o canto xavante, os atabaques bantos, um canto cerimonial indiano e uma sinfonia de Beethoven? São música, não há dúvidas, mas um ocidental em meio à floresta mobilizaria os mesmos sentimentos que um xavante ao ouvir a canção entoada em uma cerimônia religiosa? Um banto da Nigéria teria um deleite estético da mesma forma que um berlinense ao ouvir a nona sinfonia? A música, apesar de guardar algumas características que a permitem ser classificda como tal, possui um componente social muito marcante, diferenciador do modo como uma sociedade possibilita ao compositor sublimar sentimentos e fantasias em algo passível de ser apreciado e sentido por seu grupo, ademais, adquire ao longo da história uma lógica própria, uma maneira específica de relação com a razão, quase como uma gramática de uma língua (imaginem, leitores, uma escala feita em um piano, se o pianista deslizar e tocar apenas uma tecla errada ou a mais, vocês não sentiriam um quê de desarmonia nos ouvidos? ).

Julguei dois compositores emblemáticos para abordar este tema: Bach e Mozart. O primeiro motivo é óbvio, são geniais, ou, mais especificamente (dentro das intenções do texto), são considerados geniais atualmente, dotados de uma aptidão rara para a composição e a execução musicais. Bach demorou décadas para ser reconhecido enquanto tal, apesar de praticamente fundar na polifonia a relação entre harmonia e contraponto e levar ao extremo as fugas, foi criticado muito tempo por possuir traços ditos arcaizantes, oriundos da música medieval. Porém, foi resgatado por alguns compositores românticos e alçado à categoria de gênio no século XX. Deixarei os detalhes deste debate para a terceira parte deste texto.

O segundo motivo para a escolha destes músicos foi o momento histórico em que viveram, no qual a música ainda não era uma arte de artista, mas uma arte de artesão. Os detalhes destas categorias sociológicas serão discutidos na parte sobre Mozart, mas apenas para informar rapidamente ao caro leitor minhas intenções, farei um breve resumo comparando estes dois a um compositor de outra época, Beethoven.

Bach e Mozart produziram em um período no qual o gosto era exterior ao artista, isto é, o que era belo era ditado pela nobreza cortesã (e em última instância pelo príncipe). O músico era de vital importância, pois provia o entretenimento para os nobres avessos ao trabalho manual, mas possuía o mesmo status social de um cozinheiro. Como não trabalhavam na produção, os membros da corte atribuíam-se o trabalho de ouvir e avaliar as composições, por menos que soubessem de música, obrigando os artistas, para serem consagrados, a respeitar determinadas regras na hora na composição. Mas, mais profundamente, este quadro refletia a situação social do músico: era um não-nobre, por melhor que fosse, seria sempre um serviçal, deveria produzir sonatas, cantatas, concertos, sinfonias e óperas como o cozinheiro preparava os banquetes, correndo sempre o risco de o nobre enjoar do tempero. Bach viveu assim em uma das épocas mais duras – em relação ao gosto estrito - do mecenato, sua estratégia, consciente ou não, foi buscar na transcendência religiosa dos temas uma forma de superação das amarras impostas a sua música.

Já Mozart, como menino prodígio, possuía certo reconhecimento em diversas cortes européias, mas isto não foi o suficiente para ele se firmar como artista autônomo. Diversas de suas transgressões à música de corte foram aceitas, mas isto não significou um rompimento com esta forma. Porém, sua atitude avant-la-lettre o colocou à margem das instâncias de consagração de Viena, provocando a depressão que antecedeu sua morte.

Aqui, o contraponto é Beethoven, que começou a compor à época da maturidade de Mozart, mas viveu seu auge em uma fase de ascensão econômica da burguesia, acompanhada de certo ganho de prestígio social, enquanto na França, concomitantemente, esta classe alcançava o poder político. Isto representou um aumento gigantesco de um mercado de música – óperas passaram a vender ingressos ao público em geral, o comércio de partituras e instrumentos se expandiu -, significando uma mudança na relação entre o produtor e o consumidor de arte. O músico passou a interagir com um mercado mais amplo - o público burguês era maior em número e mais diversificado- e não apenas com um tipo de empregador que determinava as regras. Tornou-se possível compor mais livremente e ao artista estimular e influenciar o gosto do público. Beethoven conseguiu realizar sem grandes conflitos o projeto de autonomia que Mozart tentou sem sucesso. Pôde, assim, subjetivar sua produção, de maneira mais livre tanto na forma quanto no conteúdo e no método de trabalho, com a possibilidade de escolher o consumidor final e com acesso a um maior número de libretos, apesar de ter composto poucas óperas. A arte passou a depender mais do modo como o artista encarava suas fantasias, como questionava a si mesmo e ao mundo e como subjetivamente produzia e sublimava na forma de obra de arte do que do gosto de classe, ou seja, dependia de como sua consciência sublimada encontrava eco ou fazia ecoar as estruturas simbólicas de sua sociedade; a autoconsciência passou ser mais determinante do que os dogmas da tradição. É interessante o fato deste processo ter ocorrido anteriormente com a literatura na Alemanha, que, muito antes da música, constituiu seu mercado de bens culturais.

Portanto, Bach e Mozart podem melhor ajudar a compreender como os fatores históricos e sociais estão relacionados com a produção musical pois viveram uma época em que os sentimentos deveriam ser canalizados por um critério puramente de classe, no qual não havia sentido pensar a arte pela arte. Mozart pode ter sido um indivíduo com alguma qualidade especial inata, mas a forma como ele utilizou esta qualidade na música foi determinada também pelo seu contexto histórico-social.

Deste último aspecto, derivarei o terceiro motivo de minha escolha: o caráter quase mítico adquirido por Mozart. Nas histórias e frases que ouvimos, como “Mozart é a própria música” ou “Mozart estava conversando com amigos e ficou calado por alguns instantes, pediu licença e voltou quinze minutos depois: acabara de compor um quarteto de cordas”, (inclusive, muitos fatos excepcionais, como este último, estão registrados em correspondências de amigos e da família do compositor), este caráter de um homem acima dos homens pelo seu gênio singular é marcadamente expresso, possibilitando uma análise mais clara – pela força do objeto – e desmistificadora, mas não no sentido de diminuir o autor e a obra, mas de valorizá-los como trabalho humano, e não como fonte dos deuses ou orixás, santos, ou qualquer instância sobrenatural.

Antes de se afirmar se o gênio de Salzburg nasceu diferente dos demais seres humanos ou se ele se construiu de forma distinta, é preciso deixar claro que muitos se aventuraram, mas poucos conseguiram alguma resposta. As análises basearam-se em fatos documentados e em séries de correspondências, mas, segundo críticos, ou chegaram a becos sem saída pela insuficiência das fontes existentes ou pecaram pela mesma mistificação aqui criticada: tentaram explicar o homem, mas “esqueceram” de compreender o mundo vivido.

Então, o que é o talento? A psicologia pode não ter desvendado a natureza de muitas questões relativas à sensibilidade, à capacidade de transformar as sensações internas na materialidade da obra artística – a objetivação das estruturas sentimentais – ou das indagações relativas ao caráter congênito ou adquirido dessas potencialidades. No entanto, é possível refletir rapidamente sobre o exemplo acima tratado através de perguntas simples: seria Mozart um grande compositor se não tivesse nascido numa família de músicos, escutado desde o berço o pai – professor tido como brilhante e perfeccionista – dar aulas de piano à irmã e aos três anos tocar pela primeira vez as teclas para rivalizar com a menina e receber as mesmas gratificações afetivas de seu progenitor? Se não tivesse excursionado pela Europa ainda menino, recebendo mais carinho do pai e paparicos dos membros das cortes anfitriãs quanto melhor tocava e nestas viagens ter tido contato e aprendido com músicos como Haydn? Se ele não se formasse intelectual e emocionalmente em um círculo social no qual a música era a única e pequena possibilidade de ascensão e prestígio social? Ou, se a sua relação com o mundo não tivesse sido tão fortemente mediada por um pai disciplinador, que estruturava o afeto entre pai e filho pela música?

São dimensões extremamente complexas de serem trabalhadas e não me proponho a qualquer solução, contudo pretendo utilizá-las para conduzir o questionamento central deste texto. Quero apenas instigar o caro leitor a imaginar até que ponto nosso próprio juízo sobre estes gênios criadores não está influenciado pelo individualismo de nossos dias e se, desta maneira, nós não ocultamos a História e criamos mitos para justificar ideologicamente nossa própria alienação, o apartamento de nós mesmos por forças incontroláveis; a pensar se esta forma de encarar as relações sociais e os homens não é fruto de um pensamento tipicamente reacionário, cuja reprodução está presente nos discursos mais cotidianos (mas que passam despercebidos), e, finalmente, a dar elementos para um debate neste blog acerca própria produção contemporânea.

Caros leitores: para quem chegou até aqui, farei algumas observações:

1 – O texto ficou muito grande para um blog, então eu o desmembrei em três:

1.1 INTRODUÇÃO: A primeira parte, postada acima, teve o intuito de situar o leitor na discussão que desenrolarei ao logo das partes, os problemas a serem debatidos e propor alguns questionamentos relativos ao individualismo de análise..

1.2 O HOMEM-ARTISTA MOZART: Nesta segunda parte, pretendo discutir alguns pontos da biografia e da obra de Mozart a partir de uma perspectiva sociológica (com algumas sugestões de análise psicológica). Por exemplo, como era sua relação com seus empregadores e com seu pai. Qual a diferença entre se produzir arte de artesão e arte de artista. Como o artista lidava com as instâncias de consagração e de prestígio social de sua época. Se sua postura combativa tinha um viés político ou se era motivada por ambições pessoais e o que implicou seu rompimento com o arcebispo de Salzburg e sua ida a Viena. E porque fracassou seu projeto de autonomia.

1.3 O OUVINTE DE BACH NO PÓS-GUERRA e a CONCLUSÃO: Nesta parte, quero apontar aspectos do público ouvinte das obras de Bach após a segunda guerra e tentar produzir algumas pequenas generalizações no sentido de evidenciar como o contexto histórico do público interfere na execução e na interpretação de uma obra, como determinados juízos históricos acerca da reprodução de uma música podem produzir o contrário da pretensão do artista. E na conclusão pautar-me-ei pelo aspecto político do discurso individualista presente no discurso do gênio.

Observações para todas as partes do texto, mesmo as não postadas:

1 – Sr. Crespo, desculpe-me, mas não consigo não ser ranzinza.

2 – Não colocarei a bibliografia com o risco de, além de ranzinza, ser chato.

3 – A melhor forma de ler este texto é não ler este texto, mas comprar um bom vinho e ouvir a Sinfonia Júpiter de Mozart ou as 6 Suites de Violoncelo Sem Acompanhamento de Bach.

4 – Como um jornalista não-jornalista e pretenso sociólogo, mas ainda um não-sociólogo, declaro: este texto possui grandes generalizações, porém o Ministério da Informação adverte: foram causadas pelo formato blog.

5 – Antes que alguém pergunte: não, as categorias burguesia e corte não possuem qualquer significado valorativo, moral ou religioso, mas objetivo. E sim, são vistas a partir do ponto de vista do materialismo histórico.

6 – Vamos tomar uma cerveja e ver o tempo passar? Afinal, quem escreve poesia não é poeta, só é poeta quem vive como poeta. Beberemos cerveja, pensaremos que somos poetas, mesmo não o sendo. Viva a ilusão etílica. Viva Baudelaire. Qui dit vous?

Observações sobre o blog:

Parafraseando (ou melhor, copiando) o Regulamento Rex (publicado em Rex Time 3, de 25 de maio de 1966), proponho algumas regras para este blog:

1 – Laisser-passer (não fure a bola)

2 – Laisser-faire (deixa a gente jogar)

3 – Acreditar piamente na imortalidade da Alma (por uma questão de conforto)

4 – Manter o Bom-Humor a todo pano. (... o Bom-Humor nosso, não o dos outros)

5 – A Pena e a Espada dominam o Mundo, a Vaselina supera as duas. (Atualmente já existe o KY)

6 – Eu sou um cavalo velho, que venho de todas as guerras e batalhas, e não estou ligando para mais nada.

7 – Nós vemos tudo, ouvimos tudo, falamos tudo e eles não vêem nada, não ouvem nada, e não dizem nada (a não ser o que todo mundo sabe).

8 – A vida é feita de detalhes (ou nuances, como queira).

9 – Uma coisa puxa a outra. (Acrescento: tirar a calça tem sempre uma conseqüência)

10 – Toda a Guerra é uma festa. Toda festa é uma guerra.

11 – Quando todos estão brincando, nós estamos trabalhando, e quando todos estão trabalhando, nós estamos dormindo!

12 – Nada se cria, nada se perde, e dá tudo sempre na mesma, e vamos acabar com esta conversa, seu convencido!

5 comentários:

Flávio disse...

nao faltou mencionar o nome de norbert elias?

Eduardo disse...

Sim, será mencionado na segunda parte. Falar de bibliografia na introdução deixaria o texto (mais) chato. Imagine, Flávio, quando eu falar de Adorno? Como o texto não tem um caráter acadêmico, deixei as normas de lado, mas darei os devidos créditos.

Thiago Crespo disse...

não faltou mencionar ayrton senna?

Isabela disse...

Je dis 'oui'...
Importante discutir - o que não tira de modo algum o mérito deles -a questão do "gênio".
Parece que a palavra virou uma maneira contemporânea de afirmar que aqueles que fazem algo a mais que a maioria é sobre-humano; e, ao mesmo tempo, resumir a mediocridade destes nossos tempos de correria prática.
Du, escreva logo o resto desse tratado; e dê um jeito de colocar trilha sonora aqui no formato blog!

Eduardo disse...

Isa,
Eu pensei nesse negócio da trilha, é possível colocar videos do youtube nas postagens. Então procurarei as músicas comentadas e colocarei após o texto.