quarta-feira, 13 de junho de 2007

Uma história (verdadeira)

Era para ser um comentário ao post do Eduardo, mas ficou comprido. Fica como minha primeira contribuição.
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Mais ou menos na mesma época do Phono 73 e da censura ao "Cálice", Alexandre Vanucchi Leme, estudante de Geologia da USP, havia sido morto no DOPS. Um grupo de estudantes procurou o Gilberto Gil, que dava show também em São Paulo, para que ele fizesse um show na USP em solidariedade. Gil, a princípio não quis se envolver, mas diante da insistência dos estudantes, ele topou fazer uma apresentação modesta, só ele e o violão, pois não tinha como pagar para toda a banda ir com ele e os estudantes também não tinham como bancar equipamento e cachê. Pois bem, ele foi, com o violão, numa sala de aula na Poli, lotada, com gente pendurada pela janela e sentada no chão (incluindo esta que vos fala, com dez anos incompletos e junto com os pais; minha irmã mais velha estava naquele grupo de estudantes).
Era para ser um show breve, mas ele foi se animando e cantando, naquela sala meio escura, naquela USP meio deserta (era um sábado ou domngo, entre o meio e o final da tarde). Às tantas, alguém da platéia pediu que ele cantasse "Cálice", ele recusou, dizendo que não podia (já tinha rolado a história com o Chico no Phono 73), que não sabia a letra... Mas alguém, na platéia, tinha uma cópia da letra, na verdade, comearam a circular algumas cópias das letras e, de novo, diante da insistência, o Gil topou -- só tocar a música, sem cantar. E aquelas cópias da letra, surgidas sabe-se lá de onde, circulando pela platéia, permitiram que o público, aos poucos, formasse um coro poderoso de "cale-se".
Se esse foi o momento político meio arrepiante (33 anos depois, não ouço essa música sem evocar a cena, às vezes como apenas cenário, às vezes com um nó na garganta), em um outro episódio desse mesmo show, Gil conseguiu botar a platéia em uma espécie de transe religioso (era seu período mais místico, num sincretismo afro-zen-hippie maluco). Ele começou a contar que tinha ido ao carnaval de Salvador, procurar os afoxés, e tinha encontrado os grupos esvaziados, desanimados, desesperançados: "afoxé tá prá acabar", ninguém mais quer ver nem participar.
E isso vai virando uma introdução longuíssima, a voz do Gil como a dos pretos velhos do afoxé, num português com acento iorubá, repetindo numa espécie de mantra "afoxé tá prá acabar", "afoxé tá prá acabar", a batida dos dedos no violão como a imitar os atabaques ("os atabaques batendo, os agogôs cantando e a gente se arrepiando") e movendo o corpo como a receber um santo, até que finalmente ele começa a cantar "Filhos de Gandhi" ("ai, meu pai do céu, na Terra é Carnaval, manda o pessoal, manda descer para ver Filhos de Gandhi/ Iemanjá chama Xangô, Oxóssi também/manda descer para ver Filhos de Gandhi").

naquele momento solitário (na USP, nos anos 70, havia uma sensação de isolamento muito grande; o "outro lado" da ponte não era assim tão habitado quanto é hoje e, além da geografia urbana, havia outras razões, ideológicas, para a universidade, como foco de resistência cultural e política, estar apartada; evidentemente, essa elaboração é posterior, mas a sensação é da minha memória) e escuro (por causa da luz da tarde que se esvaía, das celas mal iluminadas onde aconteciam os terríveis interrogatórios, das trevas metafóricas que estavam por todas as letras de música e todos os escritos de jornal), invocar os orixás parecia dar transcendência ao ato coletivo de ouvir música.

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Toda essa história está contada com mais detalhes em “Cale-se”, livro-reportagem de Caio Túlio Costa publicado em 2003. Para mais informações, tem um artigo bacana sobre o livro publicado no Observatório da Imprensa, outro do Mário Sergio Conti não tão bacana assim e ainda um da Folha, escrito pelo Marcelo Rubens Paiva que, como eu, era irmão mais novo dos "agitadores" de 73.

5 comentários:

Isabela disse...

Irmã mais nova dos agitadores, como era isso na época, aos 10 anos? Compreendia alguma coisa? Lembro-me de ser uma cara pintada aos 7 anos, mas era tudo uma grande festa, como um carnaval de rua, sem causas ou consequências!

Bia disse...

Sim, compreendia alguma coisa -- não tudo. Fragmentos, impressões, angústia: não era um período festivo.

Eduardo disse...

Nossa, deve ter sido formidável, li o texto e fiquei tentando construir a cena. É triste imaginar que hoje mobilizações artísticas/políticas deste tipo são praticamente inexistentes (inclusive com o espaço da universidade esvaziado). Mas não há saudades, sou da geração dos yuppies, não dos hippies.

Bia disse...

Du, lê o livro do Caio Túlio, "Cale-se". É bacana.

Thiago Crespo disse...

E quem diria que, trinta e pouquíssimos anos depois, o quase-mesmo ministro Gil estaria a falar para os alunos igualmente interessados da Facamp.

E também pediram para que ele tocasse (qualquer coisa, lógico), ao que ele respondeu: "Não precisa, não precisa". Fiquei aliviado, mas ele completou: "Não precisa nem pedir! (...) SE EU QUISEEER FALAR COM DEEEUS".

Uns três anos depois, mesmo que nunca mais tenha ouvido essa música, evoco a cena sempre com um nó na garganta.

Como as coisas são tão diferentes com cenários quase-mesmos. A sua história certamente é melhor que a minha, Bia.